quinta-feira, 9 de abril de 2020

Predestinação e livre-arbítrio no conceito yorùbá de pessoa


Predestinação e livre-arbítrio no conceito yorùbá de pessoa[1]
Ọlátúnjí Ayọọlá Oyèsílé[2]
Tradução de Mário Filho
131years old priestesses living under the OlumoRock Ancient rock in Beokuta city of Ogun State, Nigeria, Africa
Imagem disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:131years_old_priestesses_living_under_the_OlumoRock_Ancient_rock_in_Beokuta_city_of_Ogun_State,_Nigeria,_Africa.jpg

INTRODUÇÃO
Neste artigo, examinamos as aparentes contradições e paradoxos que são inerentes ao conceito metafísico da pessoa no sistema tradicional de crenças yorùbá, especialmente no que diz respeito à questão da predestinação e do livre arbítrio. Os yorùbá acreditam que uma pessoa teve sua biografia ou história de vida escrita antes de entrar no mundo (por meio do nascimento). É essa biografia que a pessoa vem ao mundo para cumprir - como pode ser vista na noção de Orí (cabeça interior / destino), que é descrita de várias maneiras como Ayànmọ́ (destino que está afixado em uma pessoa, que está além do controle humano e não pode ser alterado, uma vez que o homem é criado com ele, permanecendo assim até o fim de sua vida terrena), Àkúnlẹ̀yàn (destino que é escolhido e recebido enquanto se está ajoelhado) e Àkúnlẹ̀gbà (destino que é recebido enquanto se está ajoelhado). As perguntas que surgem de nossa concepção do destino são: Onde, então, é o lugar da liberdade humana em relação às forças metafísicas? A vida do indivíduo é predestinada ou predeterminada? Que atitude o indivíduo adota diante de alguns desses valores conflitantes? Por exemplo, ele simplesmente se resigna ao destino e considera que "o que será, será" ou luta para formar um significado a partir do "fluxo da vida" existente?
Neste artigo se discute que as contradições e paradoxos inerentes ao conceito yorùbá de pessoa são solucionáveis ​​em sua atitude em relação a questões concretas da vida e da existência. A atitude prática dos yorùbá não apresenta a crença na predestinação como fatalista, uma vez que o indivíduo, ainda, escolhe seu próprio plano de vida e trabalha para sua realização.
Em vez disso, sua crença na predestinação é um construto explicativo que proporciona satisfação emocional e psicológica aos yorùbá quando eles não têm razões naturais, físicas, práticas e empíricas para explicar eventos e ações que os afetam.

ANÁLISE DA PREDESTINAÇÃO E DO LIVRE-ARBÍTRIO NA ONTOLOGIA YORÙBÁ
As opiniões dos estudiosos yorùbá variam sobre a questão da predestinação e da liberdade humana. Alguns estudiosos, por exemplo, Wándé Abímbọ́lá[3], mantêm uma interpretação rigidamente fatalista da predestinação, sugerindo, assim, que a liberdade humana é ilusória, porque nem mesmo os deuses podem mudar o Orí [destino].
Para saber por que esse é o caso, vamos considerar a essência do Orí. (Note-se que estamos aqui usando Orí não apenas como a cabeça física humana, mas como a cabeça não-física ou interior conhecida metafisicamente como destino).
Diz-se que o Orí é a essência da sorte e a força mais importante responsável pelo sucesso ou fracasso humano.[4] O Orí governa a vida do indivíduo e se comunica com outras divindades em seu nome. Além disso, diz-se que aquilo que não foi aprovado pelo Orí de alguém não pode ser aprovado pelas divindades.[5] Isso reforça a crença na predestinação, porque o conteúdo da vida de um indivíduo depende da escolha do Orí. Em termos de conteúdo, pode ser uma vida bem-sucedida, uma vida fracassada, uma vida curta ou uma vida abundante.[6]
No que diz respeito à natureza simpatética[7] do Orí, Abímbọ́lá diz que mostra mais simpatia ao indivíduo do que a qualquer deus.[8] Portanto, o Orí é seu deus pessoal e está mais interessado no bem-estar dessa pessoa. Portanto, se uma pessoa precisa de algo, deve primeiro fazer com que seu desejo seja conhecido por seu Orí antes de qualquer outra divindade.[9] E se o Orí de um homem não estiver em harmonia com sua causa, nenhum deus harmonizará com ele e, consequentemente, ele não terá aquilo que deseja. O Orí que foi selecionado para um indivíduo no céu não pode ser alterado na terra e "de fato os próprios deuses não estão em posição de alterar o destino de um homem."[10]
Do exposto, podemos ver que é dada uma interpretação fatalista da predestinação, na qual o indivíduo não tem o direito de exercer qualquer liberdade, uma vez que tudo foi selado pelo Orí [destino] de um indivíduo. No entanto, por mais fatalista que seja, Abímbọ́lá ainda tenta explicar o fato da liberdade humana por Ìwà Pẹ̀lẹ́ (caráter gentil e benfazejo), uma explicação que, em nossa opinião, não explica totalmente a liberdade do indivíduo. Ademais, isso é contrariado por sua afirmação de que a maioria das pessoas escolhe um Orí ruim e que a tentativa de alterá-lo é inútil. Até o ẹbọ (sacrifício religioso), em vez de ser visto como um meio de mudar o destino humano, é visto por Abímbọ́lá como um meio de comunicação simbólica e ritual entre todas as forças do universo.[11]
            A questão da liberdade do homem ou da sua falta de autonomia pode ser colocada assim: “que papel é reservado para os seres humanos no universo yorùbá, onde o indivíduo não pode agir independentemente de seu Orí e onde está à mercê de dois grupos poderosos, benevolente e malévolo, de poderes sobrenaturais a quem ele tem que fazer sacrifícios incessantemente para sobreviver? O indivíduo realmente importa nesse sistema?”[12]
Ìwà Pẹ̀lẹ́, como afirmado anteriormente, é usado por Abímbọ́lá para explicar a liberdade humana. Segundo ele, Ìwà Pẹ̀lẹ́ e outros princípios menores, como àyà (peito) e ẹsẹ̀ (perna), ajudam a resgatar o homem da estrutura autoritária e hierárquica do universo, no sentido de que eles ajudam o indivíduo a regular sua vida e a evitar colisões com os poderes sobrenaturais, por um lado, e com seus semelhantes, por outro.[13] A razão dada para isso é que Ìwà (caráter) é um dos objetivos da existência humana e Ìwà Pẹ̀lẹ́ (caráter gentil e benfazejo) ajuda o indivíduo a alcançar seus objetivos.
O uso de Ìwà Pẹ̀lẹ́ por Abímbọ́lá para explicar o fato da liberdade humana não é exitoso. Isso ocorre porque nos dizem apenas que Ìwà Pẹ̀lẹ́ ajudará o indivíduo a evitar colisões com forças sobrenaturais e viver em paz com outros seres humanos; porém, quando falamos de liberdade humana, não queremos dizer apenas isso; antes, estamos pensando em uma situação em que o indivíduo exerce certa autonomia referente a questões que afetam sua existência. Abímbọ́lá sugere que muitas pessoas que escolhem o Orí errado no Céu fadadas ao fracasso na Terra,[14] e qualquer tentativa de mudar esse Orí ruim é uma luta infrutífera e sem fim para alcançar o impossível. Isso é sustentado pelo seguinte ẹsẹ̀ Ifá:
Bí ó bá ṣe pé gbogbo orí gbogbo ní í sun pósí
Ìrókò gbogbo ìbá ti tán n'ígbó
A díá fún igba ẹni
Tí ń ti Ìkọ̀lé ọ̀run bọ̀wá sí t'ayé
Bí ó bá ṣe pé gbogbo orí gbogbo ní í sun pósí
Ìrókò gbogbo ìbá ti tán n'ígbó
A díá fún Òwèrè
Tí ń ti Ìkọ̀lé ọ̀run bọ̀wá sí t'ayé
Òwèrè là ń jà
Gbogbo wa
Òwèrè là ń jà
Ẹní t'o yan'rí rere kò wọ́pọ̀
Òwèrè là ń jà
Gbogboo wa
Òwèrè là ń jà[15]

Se todos os homens estivessem destinados a serem enterrados em caixões,
Todas as árvores de Ìrókò teriam sido cortadas na floresta
Consultou-se Ifá para duzentos homens
Quando vinham do céu para a terra
Se todos os homens estavam destinados a serem enterrados em caixões,
Todas as árvores de iroko teriam sido cortadas na floresta
Consultou-se Ifá para a luta
Quando vinha do céu para a terra
Estamos apenas lutando
Todos nós
Estamos apenas lutando.
Aqueles que escolheram bons destinos não são muitos
Estamos apenas lutando
Todos nós
Estamos apenas lutando.

O relato acima de Abímbọ́lá mostra que a liberdade humana é uma ilusão diante da predestinação: é claro que parece haver algumas contradições e inconsistências em seu relato. Por exemplo, se o destino não pode ser mudado nem pelos deuses, então qual é a necessidade de Ìwà Pẹ̀lẹ́ e ẹbọ sugerida como panaceia? Talvez o que Abímbọ́lá está tentando nos apresentar é que Orí é um potente fator causal na existência humana. Apesar de sua afirmação, segundo a qual Orí é inalterável e, portanto, a liberdade humana é ilusória, muitos estudiosos tentaram encontrar um equilíbrio entre predestinação e liberdade humana. Ìdòwú (1962), Mákindé (1984), Gbádégeṣin (1998), Ògúngbèmí (1992) e Ọládipọ̀ (1992) mostram que podemos acomodar facilmente a liberdade humana dentro do modelo explicativo de predestinação.[16] Eles sustentam seus argumentos utilizando as seguintes razões: (1) a predestinação é uma espécie de convênio entre duas partes e, se for o caso, as duas partes sempre podem revisar esse convênio; (2) o uso do sacrifício por meio de Ọ̀rúnmìlà, que também pode ajudar a alterar um destino ruim; (3) Ìwà (caráter) desempenha um papel vital também para melhorar ou mudar o destino de uma pessoa. Existem mitos que sugerem que Olódùmarè (Deus) pode ter simpatia pelas pessoas que são bem-comportadas; (4) o livre-arbítrio dos seres humanos é retratado em sua existência cotidiana prática, na qual a diligência, a formação de caráter, a responsabilidade moral e a prudência desempenham papéis vitais; e (5) é até sugerido que, uma vez que cada pessoa se ajoelha, como indivíduo, para escolher seu Orí, sua liberdade foi estabelecida desse período em diante.
            Muitos estudiosos parecem concordar que a predestinação é um modelo explicativo que é utilizado quando faltam explicações naturais para certas ocorrências. É pertinente, no entanto, examinar algumas das maneiras pelas quais a individualidade e, portanto, a liberdade humana foram explicadas, dada a noção de Orí.
A cosmologia yorùbá, argumenta Ògúngbèmí, apresenta a imagem do homem como um indivíduo solitário que é deixado a percorrer seu caminho através de uma variedade de forças, algumas benignas, outras hostis, muitas ambivalentes, buscando aplacá-las. Em todas as suas tarefas, o homem só é auxiliado por seu Orí, destino, escolhido por ele mesmo antes de vir à terra.[17]
Esse posicionamento é apoiado por Ìdòwú, quando diz que é o Orí [cabeça] que se ajoelha diante de Olódùmarè para escolher, receber ou ter o destino fixado a ele. A imagem, portanto, é de uma pessoa ajoelhada diante de Olódùmarè para escolher ou receber.[18] Portanto, somos obrigados a aceitar que, pelo exposto, pressupõe liberdade de escolha, de ação e de responsabilidade moral.[19]
Pode-se argumentar, no entanto, que as várias posições acima não estabelecem completamente a liberdade do homem. Primeiro, Orí (cabeça interior/destino), no sentido metafísico, tem uma natureza paradoxal e ambivalente, no sentido de que faz parte do indivíduo, pois é a cabeça interior de uma pessoa ou o portador de seu destino. Em outro nível, Orí [destino] não faz parte do indivíduo, porque é o que o Ser Supremo (Olódùmarè) impôs a ele, determinando-o ou pelo indivíduo fazendo uma escolha do Orí por trás de um véu de ignorância, pois ele não sabe sobre o Orí que escolherá. Afinal, o indivíduo não construiu o Orí sozinho. Ele teve que escolher entre os vários Orí que já haviam sido feitos.
Em segundo lugar (e esse argumento está relacionado ao primeiro), quando olhamos para vários nomes que um destino individual ostenta ou para os processos pelos quais escolhemos os Orí, não podemos deixar de negar a autonomia do homem. Por exemplo, certas coisas podem ser ditas nos termos Àkúnlẹ̀yàn, Ayànmọ́ e Àkúnlẹ̀gbà. Àkúnlẹ̀yàn significa aquilo que é escolhido enquanto se ajoelha. Embora pressuponha um elemento de escolha do Orí, não há escolha real porque os vários Orí já estavam preparados e o indivíduo está escolhendo sob o véu da ignorância. Então ele tem uma escolha forçada. Há uma lenda que diz que Àjàlá, o oleiro que moldou o Orí, era muito corrupto e, portanto, podia dar um Orí ruim àqueles que não o subornavam. Àkúnlẹ̀gbà significa escolha em que parte dela vem de sua própria escolha, mas há outra que não. Ayànmọ́ significa aquilo que está afixado em uma pessoa, não há escolha e não é muito diferente de Àkúnlẹ̀gbà.
De nossa análise, pode-se tentar argumentar que, no nível metafísico, o indivíduo não tem liberdade e, portanto, não podemos falar sobre responsabilidade moral ou qualquer outra responsabilidade. No entanto, a crença na predestinação se opõe à vida prática do povo yorùbá.
Vemos os yorùbá tentando combinar duas crenças incompatíveis ou tentando fazer uma se conformar à outra. Argumentou-se que a crença na predestinação não é incompatível com a crença no livre arbítrio. Ọládipọ̀, por exemplo, sugere que, embora os yorùbá adotem o determinismo, é impróprio dar uma interpretação fatalista da noção yorùbá de destino.[20] Argumenta que a atitude yorùbá em relação à vida está em desacordo com o fatalismo. O fatalismo é a doutrina que:
Todo evento foi pré-ordenado e as causas dos eventos estão fora de nós mesmos; que o que quer que ocorra, ocorrerá independentemente do que fazemos; que não podemos agir, uma vez que os eventos estão além do nosso controle, que não há alternativas; essa deliberação é ilusória.[21]
Quais são essas atitudes que contradizem o fatalismo, conforme definido acima? Os yorùbá acreditam que o destino pode ser mudado por meio de Ọ̀rúnmìlà; crendo em divinação e sacrifícios para evitar desastres e atrair boa sorte para si mesmos; eles não hesitam em culpar ou elogiar as pessoas por suas ações; e, finalmente, eles trabalham para ganhar a vida.
Os yorùbá exercem um livre-arbítrio que não é incomparável com o determinismo, porque se diz que o livre-arbítrio depende da existência de certas condições que determinam a natureza das ações humanas. Assumimos que, por nossas ações, como treinamento moral, podemos fazer uma pessoa se comportar de certas maneiras. É isso que a liberdade implica, porque mostra que, embora as ações humanas sejam determinadas, pois são produtos de algumas condições antecedentes na história da pessoa, essas ações não são, portanto, sem liberdade.
Ọládipọ̀, portanto, como alguns outros, sugere que se a concepção yorùbá de destino "não é mais do que uma construção ou dispositivo pragmático para explicar fatores desconhecidos ou ocultos na existência humana, então isso parece ser uma mera extensão de causas naturais.”[22]
Em uma explicação relacionada, Gbádégeṣin afirma que os yorùbá não se contentam em explicar ações humanas baseadas apenas em ações naturais. Isso ocorre porque se caráter, esforço, sacrifício e dinamismo são essenciais para o sucesso, então o conceito de destino não terá nenhum atrativo para eles. Ele crê, no entanto, que os yorùbá não estão prontos ou preparados para eliminar o conceito de destino de sua existência cotidiana porque, em última análise, "nem o bom caráter, nem o dinamismo, nem o esforço garantem um sucesso que não esteja incluído no destino de alguém".[23] Devemos observar que, embora a posição de Gbádégeṣin permita a liberdade em um extremo, ela nega no outro, pois todas as explicações devem, em última análise, ser atribuídas ao destino.[24]
Pode-se argumentar que a crença yorùbá na predestinação e no livre-arbítrio é complexa. O que temos é uma situação em que o yorùbá médio abraça predestinação, determinismo e pragmatismo. Por exemplo, Mákindé argumenta que o sucesso ou o fracasso na vida depende não de ser capaz ou incapacitado ou de ter escolhido um Orí bom ou ruim, mas também do uso de capacidades mentais.[25] Portanto, como o objetivo de todo homem é ter sucesso na vida, é preciso combinar os fatores metafísicos do Orí com os fatores físicos, como o corpo e as habilidades mentais. Em outras palavras, uma pessoa é pragmática se for capaz de combinar os vários fatores de tal maneira que a conduzam ao seu sucesso na vida.
Portanto, podemos dizer, nas palavras de Owómóyèlá que "os yorùbá são um povo pragmático que deposita uma grande confiabilidade na prudência.”[26] Ser pragmático deve ser entendido como significando que os yorùbá enfatizam a prudência em assuntos que dizem respeito ao seu bem-estar.
            O que vale ressaltar é que os yorùbá acreditam tanto em agentes humanos quanto em metafísicos a respeito de sua existência. O yorùbá crê em agentes humanos porque, como ser racional, ele desempenha um papel importante na consecução de certos fins. Por isso, ele trabalha, comporta-se bem na sociedade e se associa a outros seres humanos. Em tudo isso, ele exerce sua liberdade. Isso, também, o torna primeiramente um determinista, porque ele acredita que certas causas são responsáveis ​​por eventos particulares. Sua liberdade o guia na escolha das coisas apropriadas para fazer.
Além disso, para o indivíduo yorùbá, os agentes metafísicos são de importância secundária e de último recurso. Ele apela, por exemplo, ao seu Orí (cabeça interior / destino) quando seus esforços fracassam ou quando ele é dominado por certas sucessos. O Orí também é de último recurso, porque todos os esforços, se eles levam ao sucesso ou fracasso, estão finalmente situados nesse agente metafísico. A razão para isso é, talvez, porque ele acha que a existência transcende o mundo físico e a antecipação da morte o leva a pensar em uma força impressionante que direciona toda a sua experiência.
           
CONCLUSÃO
Embora possa parecer que a crença yorùbá na predestinação e no exercício da liberdade, como vista na vida prática, seja contraditória, paradoxal e inconsistente, nossa análise até agora sugere que não. A crença é bastante abrangente no sentido de que abarca os aspectos físicos e não físicos do homem; em outras palavras, “neste mundo” e no “outro mundo”, e é aqui que reside o pragmatismo dessa visão. O indivíduo quer uma explicação para tudo que ocorre na vida para ele e para os outros. E se a crença nos agentes metafísicos produz resultados positivos ou negativos, ajuda-o, no entanto, a consolidar sua crença como um ser em um mundo misterioso, onde as soluções não podem ser prontamente fornecidas a todos os problemas por meio do esforço humano somente.
Dito tudo isso, notemos rapidamente que com os avanços registrados na ciência e na tecnologia - especialmente por meio da neurociência, biotecnologia e muitas outras pesquisas de base psicológica, agora se entende muito sobre o comportamento humano e o lugar da humanidade no mundo. Isso pode tornar inválidas e vazias aquelas interpretações fatalistas do destino humano por estudiosos dos sistemas tradicionais de crenças. No entanto, também devemos observar que, apesar dessa percepção científica do comportamento humano, não se pode negar que existem certas questões fundamentais sobre o homem que não são passíveis de explicação científica. Por exemplo, perguntas como: Qual é a essência, o propósito ou o objetivo da vida? Por que estou no mundo? O que acontece com a ẹ̀mí (o princípio vital) quando um homem morre? E como alcançamos a felicidade?
As perguntas acima, ao mesmo tempo em que tornam atraentes e relevantes outras fontes de sondagem para a vida humana (como as metafísicas e religiosas), também tornam problemática a interpretação da ciência como solução definitiva para a situação humana. Talvez as questões levantadas aqui exijam mais pesquisas multidisciplinares.




[1] Publicado originalmente no Journal Philosophy, Culture, and Traditions. University of Ibadan. Vol. 2, 2003
[2] Doutor em Filosofia. É professor da Universidade de Ìbàdàn, Estado de Ọ̀yọ́, Nigéria.
[3] W. Abimbola, "Iwapele: The Concept of Good Character in Ifa Literary Corpus", in Yoruba Oral Tradition, ed. W. Abimbola (Ibadan: University Press, 1975); W. Abimbola, IFA: An Exposition of Ifa Literary Corpus (Ibadan: Oxford University Press, 1976).
[4] Abimbola, "Iwapele", p. 390.
[5] Ibid.
[6] Abimbola, IFA, p. 133.
[7] Simpatética pode ser entendida como existir ou operar por meio de uma afinidade, interdependência ou associação mútua; inclinações ou disposição de alguém; agir ou ser afetado por, da natureza de, ou pertencer à uma afinidade especial ou relação mútua; conforme o gênio, a natureza, a essência de. N.T.
[8] Abimbola, IFA, p. 133.
[9] Ibid.
[10] Ibid, p. 146.
[11] Abimbola, "Iwapele," p. 392.
[12] Ibid.
[13] Ibid.
[14] Abímbọ́lá, IFA, p. 146.
[15] Ibid. p. 147.
[16] Ver: S. Gbadegesin, "Eniyan: The Yoruba Concept of Person", in The African Philosophy Reader, ed. P. H. Coetzee and A. P. J. Roux (London: Routledge, 1998); E. B. Ìdòwú, “Olódùmarè: God in Yoruba Belief” (London: Longrnans, 1962); M.A. Makinde, "An African Concept of Human Personality: The Yoruba Example, "Ultimate Reality and Meaning”, Vol. 7 (1984); S. Ogungbemi, "An Existentialist Study of Individuality in Yoruba Culture; Orita, XXIV/2 (1992); O. Oladipo; "The Pragmatic Humanism of Yoruba Culture", Journal of African Studies, Vol. 8, No.3 (1981).
[17] Ogungbemi, p. 105.
[18] Ìdòwú quoted by Ogungbemi, Ibid.
[19] Ibid.
[20] Oladipo, p. 43.
[21] Reuben Abel citado por Oladipo, Ibid.
[22] Oladipo, p. 46.
[23] Ibid.
[24] Gbadegesin, p. 167.
[25] Makinde, p. 198.
[26] Owomoyela, 1981, p. 127.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

MORALIDADE E SUA JUSTIFICATIVA: O EXEMPLO YORÙBÁ


MORALIDADE E SUA JUSTIFICATIVA: O EXEMPLO YORÙBÁ[1]
Ọlátúnjí Ayọọlá Oyèsílé[2]
Tradução de
Mário Filho



Introdução
Em um mundo cada vez mais violento e imprevisível, no qual a guerra, o lucro e a luta pelo poder são dominantes e no qual a humanidade está, de boa vontade, disposta à autoimolação e destruição, há uma necessidade urgente de retornar à base moral[3] da existência humana. Essa é uma necessidade urgente para impedir o retorno ao estado hobbesiano da natureza, em que a vida do homem é "solitária, pobre, desagradável, brutal e curta".
No entanto, muitos perguntam: por que alguém deveria ser moral em um mundo cada vez mais mecanicista e automatizado, no qual o homem quase se perdeu? Este artigo fornece arcabouço para tentar responder a essa importante pergunta, examinando a lógica de ser moral, usando o grupo étnico yorùbá da Nigéria como exemplo. O artigo sugere que os seres humanos são, em primeiro lugar, morais, em razão de seus próprios interesses e secundariamente por causa do bem-estar da comunidade da qual são membros.
Em resumo, a lógica de ser moral é garantir o bem-estar humano. Alusões a Deus, força do hábito, costumes, tradição e teorias do contrato social são apêndices da primazia do bem-estar humano. O imperativo do bem-estar humano deve ser uma razão genuína para o homem mecanicista moderno retornar à base moral da existência.

Moralidade e sua natureza universal
Em toda sociedade, acredita-se que é necessário distinguir a conduta correta ou boa da conduta errada ou ruim, a fim de garantir uma vida harmoniosa. A coexistência harmoniosa é importante não apenas para garantir a sobrevivência contínua da sociedade, mas, também, para garantir seu desenvolvimento em qualidade. Quando estamos preocupados com a boa ou má conduta, estamos no domínio da moralidade.
Devido à importância atribuída à moralidade, os homens internalizaram os princípios e valores que os orientariam na escolha do curso de ação correta de tempos em tempos. A moralidade está, portanto, preocupada com a conduta humana. Em outras palavras, trata-se de ações, julgamentos e crenças certas e erradas sobre o que é bom ou ruim, sem o qual a sociedade (qualquer sociedade humana) não pode se desenvolver. É óbvio, então, que a moralidade está necessariamente ligada ao comportamento ou conduta humana, porque, se esse não fosse o caso, não haveria necessidade de elogiar ou criticar as pessoas ou suas ações ou treiná-las para que se comportem de uma maneira desejável na sociedade. (Ọládipọ̀, 1987: 44-45).
A questão que se coloca aqui é a seguinte: O que torna uma questão moral e como podemos distinguir entre moral e não-moral?
Questões morais surgem na vida cotidiana e nos são apresentadas perguntas como: O que devo fazer ou não? Como devo agir? ou Que tipo de pessoa devo ser? Essas são questões que dizem respeito tanto ao comportamento quanto ao caráter do indivíduo. (Barcalow, 1994:3) Embora se possa ver que essas questões emanam do ponto de vista de um indivíduo, uma análise cuidadosa mostraria que elas afetam o bem-estar de outras pessoas na sociedade. Podemos dizer, portanto, que as questões morais surgem "fundamentalmente quando as escolhas que as pessoas enfrentam afetam o bem-estar dos outros, aumentando ou diminuindo, causando danos ou benefícios." (ib.: 4)
Com relação à análise acima, vestir uma camisa azul em vez de vermelha, beber refrigerante em vez de café, jogar futebol em vez de beisebol não são questões morais, porque, quaisquer que sejam as escolhas feitas, não afetam o bem-estar de outras pessoas. Elas só podem se tornar questões morais se for estabelecido, por exemplo, que jogando futebol e não beisebol, o bem-estar dos outros seria afetado. Por outro lado, venda de drogas, agredir um cônjuge etc. são questões morais, porque as escolhas que indivíduos fizeram a respeito desses assuntos afetam o bem-estar de outras pessoas. Por exemplo, a venda de medicamentos vencidos ou sem receita médica pode causar danos físicos e psicológicos a outros. Devemos observar, no entanto, que questões morais não se restringem a assuntos que dizem respeito ao bem-estar dos outros, mas também surgem nos casos em que apenas o bem-estar do agente é afetado. (Ibid.) Por exemplo, a escolha de um indivíduo de cometer suicídio ou continuar lutando pela sobrevivência em um ambiente desolado é uma questão moral, não porque o ato de suicídio afeta indiretamente o bem-estar de outras pessoas na sociedade, mas também porque afeta o bem-estar do agente. Isso é melhor apreciado quando percebemos que o objetivo final da moralidade é o bem-estar humano (individual e coletivo).
De nossa análise da moralidade, vimos que escolha, liberdade e bem-estar são conceitos importantes. Também mostramos que outros são importantes quando se faz uma escolha. Talvez isso mostre que a moralidade é um fenômeno social.

Moralidade e adjetivos morais no sistema tradicional de crenças yorùbá
Os valores morais constituem um aspecto muito importante de qualquer sociedade. Segundo Gyckye, os valores morais são aquelas formas ou padrões de conduta que são considerados valiosos e, portanto, valorizados pela sociedade. Eles constituem não apenas princípios de comportamento, mas também objetivos de ação social e individual (Gyekye, 1996:54). Os valores morais no sistema tradicional de crenças yorùbá giram em torno do conceito de Ìwà (caráter). De fato, existe um consenso entre os yorùbá de que a moralidade é resumida na palavra Ìwà, que em sua tradução comum significa caráter. (Idowu, 1962: 154)
Ìwà (caráter) tem muitos derivados e é exatamente isso que torna a vida agradável. Por causa disso, é frequentemente enfatizado "que o bom caráter deve ser o traço dominante na vida de uma pessoa". (ibid) A partir dessa concepção de Ìwà, é comum ouvir aforismos como "Ìwà rere lẹ̀ṣọ́ ènìyàn", significando que o “bom caráter é o que adorna um homem”, ou melhor dizendo, a beleza de uma pessoa vem de seu bom caráter e é o bom caráter que a protege.
            O termo Ìwà, às vezes, tem um significado ambivalente porque é usado em diferentes sentidos para retratar o caráter de uma pessoa, seja bom ou ruim. Wándé Abímbọ́lá (1979) lançou luz sobre os diferentes sentidos do termo. Podemos pelo menos elencar quatro ou cinco sentidos nos quais o termo é usado, todos relacionados entre si. Etimologicamente, a palavra Ìwà é formada a partir da raiz "wà" (ser, existir) pela adição do prefixo "I". Portanto, o significado original de Ìwà pode simplesmente ser interpretado como "o fato de ser, viver ou existir". (Ibid.:393)
O segundo significado de Ìwà é caráter ou comportamento moral. Isso se origina do uso idiomático do significado lexical original de Ìwà. Tomando como esse o caso, Ìwà é interpretado como caráter e é a essência de ser. (ibid.: 394) Simplificando, Ìwà, nesse sentido, diz respeito aos aspectos morais da vida do homem, distintos de outras áreas do conhecimento humano, como economia e ciência.
No terceiro sentido, a palavra Ìwà é usada para se referir a caracteres bons ou maus (ibid.). Este sentido do termo pode ser demonstrado em declarações como: “Ìwà Ọkùnrin náà kò dára” (O caráter do homem não é bom) e “Ìwà ọmọ náà dára” (O caráter da criança é bom).
O quarto sentido do termo, Ìwà, é usado para se referir apenas ao bom caráter, como em: “Obìnrin náà ni Ìwà” (a mulher tem bom caráter).
O quinto sentido, derivado dos anteriores, é quando se fala de “Ìwà Pẹ̀lẹ́” (caráter gentil e benfazejo) e “Ìwà búburú” (caráter ruim).
Os yorùbás têm grande consideração por Ìwà e o veem como um dos objetivos da existência humana. Para alcançar o objetivo de uma vida, que é a vida boa, é preciso adotar “Ìwà Pẹ̀lẹ́” (ibid.:394-395).
Uma pessoa que se recusa a ter caráter bom ou gentil é vista como uma besta, um animal irracional. Os yorùbá dizem sobre essa pessoa: “kìí ṣe ènìyàn, ń ṣe lo f’àwọ ènìyàn bora” (Ele não é um ser humano, apenas assumiu a pele de um ser humano).
Uma pessoa bem comportada é descrita como "O ṣe ènìyàn" (ele age como um ser humano). Ele também pode ser chamado de Ọmọlúwàbí (alguém que se comporta como uma pessoa nascida com os melhores ideais). O que precede não tem nada a ver com a negação ou afirmação da natureza biológica de uma pessoa. Antes, o termo ènìyàn (ser humano) é usado metaforicamente para descrever a natureza moral de uma pessoa.
A importância de Ìwà (caráter) é amplamente demonstrada no corpus de Ifá, como podemos ver no Odù Ogbè Ògúndá (Ìdòwú, 155). Nos é contada a história de Ọ̀rúnmìlà, que estava buscando sucesso, mas foi dito que isso só seria possível se ele se casasse com Ìwà. Ele o fez e se tornou muito bem sucedido. O exemplo de Ọ̀rúnmìlà fez outras pessoas procurarem Ìwà, Ìwà, nos é dito, se tornou mãe de muitos filhos, como mostra o ẹsẹ̀ do Odù Ifá Ogbè Ògúndá:
Ẹ wá w’ọmọ Ìwà bẹrẹrẹ o
Ẹ wá w’ọmọ Ìwà bẹrẹrẹ o
Ìwà gbé dání
Ìwà pòn s’éhìn
Ẹ wá w’ọmọ ìwà bẹrẹrẹ

Vinde e contemple os incontáveis ​​filhos de Ìwà,
Vinde e contemple os incontáveis ​​filhos de Ìwà,
Ìwà carrega (as crianças) nos braços
Ìwà carrega (os filhos) de costas,
Vinde e contemple os incontáveis ​​filhos de Ìwà.

A justificativa da moralidade no universo yorùbá
A pergunta central para a observância de qualquer norma moral, em qualquer sociedade é: por que eu deveria ser moral?[4] A questão pode ser reformulada de outras maneiras, por exemplo: Por que devo obedecer às normas? Por que as pessoas devem obedecer às regras? Uma resposta para qualquer uma dessas perguntas também pode servir como resposta para outras perguntas. Muitas teorias, especialmente nas sociedades ocidentais, tentaram abordar essas questões. Segundo Frankena, essas questões envolvem a:
(1) O motivo para fazer o que é moralmente certo. (2) uma justificativa para fazer o que é moralmente correto, (3) motivação para adotar o ponto de vista moral e para aceitar a instituição moral da vida ou (4) uma justificativa para a moralidade e o ponto de vista moral (Frankena, op. cit.: 14).
Respostas dadas às nossas perguntas podem incluir algumas ou todas os seguintes: Que somos morais porque Deus ou os deuses o ordenaram; que somos morais porque nossa consciência pode ou não desejar sê-lo; e que somos morais porque é o interesse próprio do agente em ser assim. Todos esses fatores foram tomados para formar o sedimento da obrigação moral. No entanto, mostraremos que na sociedade yorùbá tradicional, como muitas outras sociedades, o fundamento da obrigação moral se baseia principalmente no bem-estar humano, que incorpora o bem-estar da sociedade e do próprio indivíduo.
É necessário ser moral para ter uma vida humana satisfatória; caso contrário, todos estaremos em situação ruim. Se seguirmos esse raciocínio ao limite, veremos que ser moral é vantajoso para todos. Em outras palavras, a razão não-moral de ser moral é o benefício que advém ao próprio agente que alguns chamam de interesse próprio. Como a lógica de ser moral é baseada no bem-estar humano, ações prudenciais e expeditas que assegurem o interesse próprio do indivíduo não podem ser enfatizadas demasiadamente.
Nossa tentativa, portanto, deverá mostrar como outros fundamentos da obrigação moral, em particular o fundamento religioso, sustentam o principal fator que é o bem-estar humano. Em outras palavras, esses outros fatores são apenas secundários e não fornecem uma base adequada para o porquê de alguém ser moral.
Comecemos nossa análise com a pergunta: Por que uma pessoa deve ter Ìwà (caráter)? Seguindo o argumento religioso, é moral porque Olódùmarè (Ser Supremo) ordenou. Além disso, é por ter Ìwà que o homem pode se libertar da estrutura autoritária e hierárquica do universo. Ìwà também garante que a vida de um homem seja guiada por alguns princípios, o que lhe permite evitar colisões com forças supernaturais e seus semelhantes.
Veremos que a pessoa moral no universo yorùbá adota o Ìwà principalmente para ter uma boa existência, como é racional conceber que a natureza pretende que ela deva ter. Ela, portanto, goza de liberdade reflexiva da crueldade da natureza e da tirania da carne (Oke, 1998: 95). A constante referência que um yorùbá faz a Olódùmarè (Ser Supremo) em questões morais torna-se necessária quando soluções empíricas para seus problemas fracassam. Por exemplo, no caso de roubo que não pode ser desvendado pelo método empírico, Olódùmarè é chamado a intervir. Além disso, o fato de o raciocínio moral yorùbá envolver o sobrenatural não significa que ele conduz à moralidade de forma transcendental. Ao contrário, a preocupação com a existência natural de cada pessoa ocupa um lugar central em seu universo moral (ibid.:96). Por exemplo, qualquer pessoa que contrarie as regras é obrigada a enfrentar sanções apropriadas.
Podemos dizer que as pessoas obedecem às leis para usufruir dos benefícios da moralidade, por um lado, e para evitar sanções que acompanham a violação de tais regras, por outro. Ao falar sobre benefícios, o indivíduo tenta ser prudente em suas ações. Ele também toma atitudes de forma expedita, dependendo da situação em que se encontra. O que tudo isso indica é que o bem-estar humano, na forma de interesse do indivíduo e da sociedade, constitui a principal justificativa para ser moral.
Observando as várias interpretações e aplicações da moralidade no sistema tradicional de crenças yorùbá reforçará nossa análise. A primeira interpretação é que a moralidade não é apenas um meio de harmonia com o universo, mas também um fim em si. Isso significa que vale a pena buscá-la por si mesmo. Em segundo lugar, acredita-se que sem moralidade ou pelo menos sem pessoas moralmente boas, o mundo seria um lugar difícil para se viver. O terceiro é que ser moral tem seu próprio fardo, mas o fardo não deve desencorajar uma pessoa de uma vida nessas moral, pois a moralidade é a própria essência e valor da vida e, em quarto lugar, os yorùbá são convencidos a serem morais por causa da posteridade. Acredita-se que nem a conduta boa, nem a má perecerão ou serão esquecidas (ibid.).
Um exame minucioso de todas essas interpretações da moralidade no universo tradicional yorùbá aponta para apenas um fator: o bem-estar humano. A alegação de que a moralidade é um bom valor por si só seria vista, em uma análise mais minuciosa, produzindo certos benefícios. O benefício será acumulado para alguém, desde que seja moral. Além disso, a afirmação de que a moralidade é necessária por causa da posteridade também pode ser vista como uma asserção que tem como foco o bem-estar humano. Por exemplo, uma pessoa que morreu deixando para trás boas ações já havia estabelecido um bom ambiente para seus filhos, parentes e comunidade. Ao contrário, se ninguém se beneficia das boas ações de uma pessoa falecida, muitas pessoas, enquanto vivos, restringem suas ações ao que é de benefício imediato ao seu estado atual. Portanto, se alguém é guiado por considerações sobre o que ganha na existência física ou na não-física, o fator máximo é o bem-estar do agente em particular e da sociedade em geral.
Outro atento olhar sobre a maneira como falamos sobre moralidade nas sociedades tradicionais revelaria uma preocupação com o bem-estar humano (Wiredu, 1980: 6). Por exemplo, o que é bom deve ser o que convém ao ser humano, o que promove a dignidade humana e o que traz alegria à pessoa e à sua comunidade. Por outro lado, o que traz miséria, desgraça e infortúnio é ruim. Embora ninguém possa contestar a afirmação de que o Ser Supremo odeia condutas imorais, é o caso de Olódùmarè aprovar algo (conduta ou ação) se tal coisa é boa em primeiro lugar (ibid.).
Embora não possamos menosprezar o papel dos seres supernaturais, ao considerar a lógica de ser moral no universo yorùbá tradicional, a observância moral do indivíduo é ditada pela prudência e conveniência, porque seu principal objetivo é o bem-estar humano. Mesmo quando consideramos as injunções morais do Ser Supremo, vemos que essas injunções são o que Ele espera obter ao iniciar qualquer curso de ação, moral ou não.

Conclusão
Concluamos este artigo levantando a questão: Como nossa compreensão da lógica de ser moral ajuda a lidar com o sentimento de insegurança no mundo contemporâneo?
Se a lógica principal de ser moral é o bem-estar humano, como o exemplo yorùbá demonstrou, o bem-estar da comunidade mundial é garantido com base no bem-estar de todos os seres humanos. E como o indivíduo é um ser social, qualquer decisão dele, imoral, afetaria o bem-estar de outros membros da sociedade e consequentemente atrasaria o desenvolvimento humano, a paz e a segurança. É dever de toda comunidade, portanto, garantir que os indivíduos absorvam virtudes morais por meio da educação, da vida comunitária, da recompensa e das sanções. Embora seja do interesse próprio do indivíduo ser moral, esse interesse próprio só pode ser garantido da perspectiva do bem-estar de todos.
Observemos que, independentemente de nossa abordagem às questões morais, o bem-estar humano deve ser sempre o foco. Um mundo seguro será aquele em que as pessoas estarão preocupadas em garantir o bem-estar de todos os indivíduos, grupos, instituições, comunidades e nações. Não podemos negociar menos que o bem-estar humano, independentemente de nossas diferenças, para que a vida continue e seja significativa para todos em nosso planeta.


Referências
Abimbola , W. (1975), Ìwàpele: The Concept of Good Character in Ifa Literary Corpus, in W Abimbola(ed.), Yoruba Oral Tradition, lbadan: University Press.
Akanmidu, R.A. (1995), Ethics and Poverty: Enquiries in Moral Philosophy. Shomolu Bafik Educational Publishers.
Barcalow, E. (1994), Moral Philosophy: Theory and Issues, California: Wadsworth Pub. Compo.
Frankena, W.K. (1995), Ethics, Second Edition, New Delhi: Prentice Hall of India Private Ltd.
Gyekye, K. (1996), African Cultural Values, Accra: Sankofa Publishing Company.
ldowu, E.B.(1?62), Olodumare: God in Yoruba Belief, London Longmans.
Kayode, J.O. (1986), African Ethics on Sex in S.O. Abogunrin (ed), Religion and Ethics in Nigeria, Ibadan: Daystar Press.
Oke, M. (July 1988) 'Self-Interest as the Ground of Moral Obligation', Second Order; New Series, vol, 1NO.2.
Oladipo, O. (1987), Morality in Yoruba Thought: A Philosophical Analysis, Quest, vol, 1 N. 2.
Sogolo, G. (1993), Foundations of African Philosophy: A Definitive Analysis of Conceptual Issues in African Thought, Ibadan: Ibadan University Press.
Wiredu, K. (l980), Philosophy and An African Culture, Cambridge: Cambridge University Press.




[1] Publicado originalmente em lbadan Journal of Humanistic Studies (n. 11 & 12, 2001/2002)
[2] Doutor em Filosofia. É professor da Universidade de Ìbàdàn, Estado de Ọ̀yọ́, Nigéria.
[3] O autor não usa a palavra ética em seu texto, mas moral, o que nos leva a ter que fazer algumas observações, pois podem surgir problemas quanto ao uso dos termos "ética" e "moral".
Elas derivam do grego “ethos” e “ethikos” e do latim “mores” e “moralis”, que podem ser traduzidas de várias maneiras como costumes, maneiras ou normas sociais. De fato, porém, é possível diferenciar a raiz grega da ética da raiz latina da moralidade de uma maneira que nos pode ser útil. Assim, "ética" se inclina para decisões baseadas no caráter individual e na compreensão mais subjetiva do certo e do errado pelos indivíduos, enquanto "moral" enfatiza as normas comuns ou sociais amplamente compartilhadas sobre o certo e o errado. Em outras palavras, a ética é uma avaliação individual dos valores como bom ou ruim, enquanto a moralidade é uma avaliação da comunidade mais intersubjetiva do que é bom, certo ou justo para todos.
A relevância da distinção é vista quando perguntas como "como devo agir?" e "o que devo fazer?" são ampliados à pergunta de Sócrates: "como devemos viver?". Concedida a multiplicidade de culturas e tradições da sociedade moderna, resultando em uma colagem moral diversificada, sem uma única verdade facilmente identificável, a grande questão moral é certamente: "como devemos viver juntos?". (SABARINI, 2014)
Certos costumes ou comportamentos são reconhecidos como bons e outros como ruins, e estes compreendem coletivamente a moralidade, ou seja, a soma do nosso sistema de valores como seres humanos. É, então, nesse sentido, a busca do bem-estar da comunidade, que o texto é construído pelo autor e é a forma como deve ser entendido. N.T.
[4] A questão “por quê ser moral?”, que foi formulada expressamente no contexto do debate filosófico acadêmico por Francis Herbert Bradley, divide os leitores quando buscam sua resposta em Kant. Uns acham, como Gerold Prauss, que Kant negue a possibilidade de tal resposta e diga que a moral precisa ser aceita como um fato simplesmente dado, o “fato da razão”. Contudo, como tal imediatismo ou “decisionismo transcendental” parece insatisfatório, um outro grupo defende a assim chamada “interpretação do agente racional”, onde este último apresenta o valor supremo, absoluto, que fundamenta a moral e, com isso, apresenta a razão em virtude da qual devemos agir moralmente. Mas tal valor absoluto ou já é moral, mas então a resposta dada à questão “por quê ser moral?” entra num círculo vicioso. Ou tal valor faz a moral depender de algo fora da moral o que, conforme Kant, destruiria toda moral. A solução do problema é a seguinte: Kant não deriva a moral de um pressuposto extramoral nem pressupõe a própria moral como simplesmente dada, mas explica o originar da moral. Ela origina da razão prática pela volta dessa razão sobre si mesma que constitui sua autonomia. Por este seu originar, a moral não é uma mera derivação de algo pressuposto, mas algo radicalmente novo, original, autónomo. Pelo outro lado, existe, sim, uma fundamentação da moral, i.e., um processo compreensível de sua constituição. Com isso, Kant evita o imediatismo: a moral não precisa ser simplesmente aceita como um fato puro, mas pode ser compreendida pela razão. (UTZ, 2018) NT.

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