O mistério da Macumba: curiosas revelações sobre os ritos africanos no Brasil
Por
Carlos Alberto Nóbrega da Cunha
(Matéria
publicada no Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 04 de setembro de
1923, p. 1 e 5. O português foi atualizado para as normas vigentes. Notem o
preconceito em toda a matéria.)
Uma revelação desconcertante para o
leitor: os povos bárbaros da África, como os índios selvagens da América, não
são fetichistas, nem praticam simplesmente o animismo: são espiritualistas.
Lançada assim, a afirmativa causará
espanto, pois a opinião universal – contraditada apenas de maneira vaga por
poucos sábios – admite piamente os ensinamentos de missionários que viram feitiço
em tudo que se afastava da sua fé ou de viajantes e etnógrafos materialistas
que, observando as coisas superficialmente, reduziram a totemismo ou a animismo
todas as manifestações religiosas, cujo sentido interno não puderam penetrar.
A verdade, entretanto, é o contrário. E a prova, quanto aos africanos (dos índios tratarei quando se me oferecer outra oportunidade), pode ser encontrada aqui mesmo no Brasil, entre os descendentes dos milhões de escravos que durante três séculos de martírio, amassaram com suor e sangue os alicerces econômicos da grandeza nacional. Eles trouxeram para o solo americano costumes, danças e ritos originários de suas terras e seus descendentes ainda os conservam e praticam na forma quase primitiva, se bem tenham sido influenciados pelo Catolicismo.
Estudando-se esses ritos em torno dos
quais já correm lendas, pode-se observar a capacidade criadora de raças
inferiores, que não obstante um grande atraso intelectual, tinham alcançado,
desde tempos imemoriais, uma alta concepção da vida e do universo, notável,
principalmente, pela sua extraordinária semelhança com nossa concepção bíblica,
segundo a moderna exegese dos tratadistas do Espiritismo e da Teosofia, fora do
espírito dogmático do Catolicismo.
Todas as formas religiosas africanas
praticadas no Brasil, com denominações várias e pequenas divergências de
detalhes no dogma e no ritual, conforme as regiões de onde procedam, são, na
essência variantes da Macumba, rito que me parece a expressão mais
primitiva e rudimentar do espiritualismo. Senão, vejamos.
O
DOGMA
O dogma da Macumba é simples, ao contrário
do ritual que, como o de todas as religiões no seu período primitivo, é
tremendamente complicado.
Para sua fácil compreensão, convém ficar
salientado aqui a existência das variantes a que me referi e que são seitas ou escolas,
simples maneiras, ligeiramente diversas, de se interpretar o dogma ou cumprir o
ritual, peculiares às diferentes raças e a cada uma das quais os adeptos, entre
si, dão a denominação de linha de Umbanda, dos povos de Angola e do
Congo, que é a mais conhecida nesta capital e que recebeu mais direta e
profunda influência do Catolicismo; a linha do Candomblé, praticada
largamente na Bahia pelos indivíduos da raça nagô, oriunda de certa região
vizinha do Dahomey, à qual etnógrafos europeus atribuem, não sei por que, uma religião
do sangue, cuja natureza, infelizmente não sabem explicar nas suas obras; a
linha de Gêge, dos indivíduos da raça do mesmo nome; e outra, ainda, de
menor vulto, dada a diminuta porcentagem de representantes de outras raças negras
no Brasil.
A linha de Umbanda, suponho, deve
ser uma forma eclética, pois parece uma verdadeira fusão das outras linhas, das
quais contém inúmeras características. Por esse motivo e pela dificuldade de
examinar, num simples artigo de jornal, cada uma delas, de per si, tomo
aquela para objeto deste ligeiro estudo.
CONCEPÇÃO
DO UNIVERSO E DA VIDA
Religião de povos atrasados e incultos, a
Macumba não possui uma bíblia que coordene e transmita a doutrina. O seu dogma
está na tradição oral dos adeptos e vem passando, de geração em geração, sendo,
por isso, absolutamente impossível assinalar-lhe uma origem, um fundador, uma
história.
Tendo feito, no bas-fond[1]
carioca, um inquérito meticuloso e paciente que durou anos, cheguei,
finalmente, depois de muita observação e muitos interrogatórios, ao seguinte
esboço de cosmogonia segundo os ensinamentos dos “pais de santo”:
I
– O Universo é único sob dois aspectos: um visível e o outro invisível. Todos
os seres – anjos, homens, animais, plantas, pedras etc. – participam dessa
dupla natureza e tem, portanto, dois aspectos: corpo e alma, isto é, visível e
invisível.
II
– Oxalá é o Rei do Universo, divindade suprema, pai e senhor, absoluto de tudo
e de todos, cuja vontade criou e mantém o céu, a terra, o mar, os astros e
todos os seres. (2)
III
– Oxalá é bom porque é pai e é justo porque é bom. Tudo que faz é bom, mesmo
parecendo mau para as suas criaturas e útil a elas, porque só ele sabe o que é
bom, o que é justo e o que é útil.
IV
– Oxalá mora no céu, num palácio maravilhoso e encantado, para lá da Lua, para
lá do Sol, ainda mais para lá da região azul das estrelas.
V
– É de seu trono, que há de ser deslumbrante pois que é o rei de tudo,
administra o Reino por intermédio de uma infinidade de servidores, agentes da
Sua vontade, fiéis executores de Suas ordens, que percorrem os quatro cantos do
mundo como pássaros, como ventos.
VI
– Os servidores de Oxalá são entidades de ordem espiritual, dotadas de poderes
proporcionais ao atingidos na hierarquia. São três esses graus: Tata, Orixá e
Quiumba. Correspondem, pelas funções na hierarquia do Catolicismo, a: Arcanjo,
Santo e Alma.
Os
Tatas têm a seu cargo a direção de grandes divisões do Universo e, deles, o
maior é o próprio Oxalá, que recebe, por isso, a denominação de Tata Grande. Os
Orixás são os zeladores dos reinos da natureza e dos agrupamentos humanos, como
os santos católicos são padroeiros de países, cidades e instituições. Os
Quiumbas são as almas dos mortos, que, separadas dos seus antigos corpos vagam
no espaço, enquanto esperam novo nascimento. O Quiumba nasce para penar. Morre,
voltando ao aspecto invisível e, no intervalo de duas vidas, vagueia pelos
lugares em que viveu, acompanha e auxilia os parentes e amigos ou persegue os
inimigos, se ainda lhes conserva ódio. À proporção que se sucedem as suas
reencarnações, melhora, desenvolve-se, adquire conhecimentos e poderes e vai,
assim, tornando-se aos poucos em Orixá. Este, por sua vez e pelo mesmo
processo, pode chegar a Tata.
VII
– Cada Quiumba encarnado, isto é, cada um de nós, não está abandonado sobre a
superfície da terra, poque um Orixá, tal como o Anjo da Guarda do Catolicismo e
o Protetor do Espiritismo, acompanha-lhe os passos atentamente, procurando
orientá-lo no caminho bom e desviando os perigos que o ameacem. Esse Orixá é o
Santo de cada um.
Por esse esboço que resumi, reproduzindo,
com a mais próxima fidelidade, as ideias e até as expressões dos macumbeiros,
verifica-se quanto eles se avizinharam da concepção bíblica, criando uma
religião espiritualista bastante adiantada, no dogma, pelo menos, relativamente
ao atraso intelectual em que se encontram anda hoje.
HIERARQUIA
DOS ADEPTOS
A hierarquia dos adeptos comporta quatro
graus: Cafioto (filho), simples crente que observa e cumpre as regras do rito; Ogan
(masculino) e Gibonan (feminino), homem e mulher por cujo corpo, dotado de
qualidades mediúnicas, os Orixás e Quiumbas se manifestam nos atos do
cerimonial; Cambondo, ogan instruído nos principais mistérios da linha e
que, por isso, desempenha as funções de auxiliar ou sacristão do Sacerdote; Pai
e Mãe de Santo, sacerdote e sacerdotisa do rito, que conhece os mistérios,
dirige as cerimônias, invoca os Orixás e os Quiumbas, faz e desfaz trabalhos.
O
“CANZOL” (figura 1)
A Macumba não tem organização, nem há,
entre as diversas linhas como entre os próprios “Pais de Santo” de uma
mesma linha, nenhum entendimento, nenhuma opinião, nenhuma ideia de
solidariedade que as ligue num corpo só com um aparelhamento estabelecido,
conforme sucede às outras religiões.
Por isso, não há, também, Templos para o
culto, nem escolas onde se preparem os candidatos ao sacerdócio. Cada “Pai de
Santo” pontifica isoladamente perante o seu povo. Ele mesmo inicia os cafiotos
no rito e ensina a mironga da sua língua aos que demonstram
aptidão para o grau de ogan ou de gibonan, como prepara estes
para cambondos, escolhe, instrui e sagra os futuros “Pais de Santo”.
Daí, as pequenas divergências que se observam dentro da mesma linha na
interpretação do dogma e na prática ritual.
Todo “Pai de Santo” tem, em sua casa, um
compartimento especial, que recebe a denominação de Canzol, reservado
para o oratório, no qual ele arma o estado do seu santo, espécie
de altar como o das igrejas, contendo imagens e uma infinidade de objetos
utilizados no culto ou no preparo dos trabalhos: espadas – símbolos dos poderes
dos Orixás de raça branca, como Ogun (São Jorge) e Xangô (São Sebastião);
flores, conchas e pedras do fundo do mar – símbolos dos Orixás das águas, como
Yamanjá (Yara dos indígenas e Mãe d’Água dos caboclos); arco e flechas –
símbolos dos poderes dos Orixás do mato, como Poê, Pombagira, Eixun; espingarda
do tipo pica-pau – símbolos dos poderes dos caboclos; paus, bengalas, porretes
– símbolos dos poderes dos Orixás do Congo, da Angola e da Guiné. Além desses
objetos simbólicos há sempre no Canzol: facas, cachimbos, pólvora, cera, fumo,
ervas, sementes, peles e chifres de animais, figas, bentinhos, giz, pedra de
cevar, búzios, colares especiais de vidrilho ou de taquarinha, chamados guias
de santo e que todo indivíduo, ao ser iniciado no rito, recebe das mãos do
“Pai de Santo” e passa a usar, no pescoço, durante o resto da vida.
O Canzol conserva-se fechado comumente e
só se abre, nos dias de cerimonial, para a retirada dos objetos do culto ou, em
ocasiões especiais, para a realização de trabalhos secretos, como fechamento de
corpo e outros, que não devem ser executados diante de todos os fiéis.
O
RITUAL
O ritual da Macumba é uma série de
cerimônias de invocação aos Orixás e aos Quiumbas, empregando-se cânticos,
danças, encantamentos e operações mágicas para que eles, incorporando-se ao
ogans ou às gibonans, possam entrar em comunicação com os fiéis e atender aos
seus pedidos.
Tudo se passa ao ar livre, no terreiro, e,
só em caso de chuva ou de receio da polícia, é que se executa dentro de casas e
a portas fechadas. Forma-se uma grande roda em que homens e mulheres tomam
posição em pé ou sentados em pedras, troncos, tamboretes ou bancos, sem ordem
de colocação. Apenas os tocadores de atabaques (tambores cônicos feitos de
troncos escavados) ficam todos mais ou menos juntos, devido à necessidade de
uniformizar o ritmo, elemento de suma importância no cerimonial.
É, então, que o “Pai de Santo”, depois de
ter feito algumas orações no Canzol aparece, acompanhado pelos cambondos
e todo paramentado, isto é, metido numa camisa vermelha e com a cabeça enfiada
num gorro da mesma cor, tendo nos lados e no forro uma cruz e um friso dourados,
coloca-se no centro da roda e dá início ao cerimonial, fincando no chão uma
vela acesa entre dois copos contendo água. Ajoelhado ante à vela, sacode com a
mão direita e atira à frente o sangôrôrô (meia dúzia de búzios),
cantando, ao mesmo tempo, o ponto de licença para abertura da mesa,
isto é, da cerimônia a realizar-se, ponto que os fieis, em coro, repetem como
uma ladainha. (figura 2)
“Dá licença, Oiê,
Dono do Reino?
Dá licença, Oiê,
Dono do Reino?”
Conforme a posição dos búzios – caindo
metade branca, metade preta, ou a totalidade de uma cor só cor – considera-se
dada a licença. Se, porém, há desencontro, repete-se a operação mais duas vezes
e, segundo o resultado, faz-se ou não a cerimônia.
Dada a licença, levanta-se, suspende-se o ponto
que estava sendo cantado e, em silêncio, reza mentalmente, durante alguns
minutos, certas orações que só ele sabe e só transmite aos cambondos, quando os
sagra sacerdotes. Depois, com o dedo, risca no chão o signo cabalístico do
Orixá que vai arriar e começa a cantar, acompanhado pelo coro dos
adeptos e pelo ritmo monótono dos atabaques, uma outra oração especial para
invoca-lo, porque para cada um há signo e iman próprios. Ao mesmo tempo
chama para o centro da roda e coloca, em duas filas, numa os ogans e noutra as
gibonans, para a dança, que, então, se inicia e dá a impressão de uma quadrilha
bárbara que os indivíduos se movem isoladamente, sem formação de pares, mas
mudando de posição segundo o canto como se este marcasse o desenvolvimento do
bailado. Os fieis repetem o iman [cântico], acompanhando-o com palmas.
Em pouco tempo começa a exaltação dos
sentidos. A ladainha acelera-se, acelerando a dança e transformando a expressão
fisionômica dos indivíduos, cujos olhos arregalados e fixos, parecem, então,
encobertos por uma névoa vitrificada.
Aproxima-se o momento de descida do
Orixá. O “Pai de Santo”, sentindo essa aproximação, cujo sucesso depende, em
grande parte, da firmeza e da intensidade do ritmo – pois o que se está fazendo
é verdadeiro encantamento magnético, operação empregada em todos os tempos, por
todos os povos nos trabalhos de magia – entusiasma os fiéis, excitando-os com
exclamações, para mais exaltar o canto e, assim, fortalecer a cadeia formada
pela concentração em todas as atenções:
- É, mias fio! É, guenta iman, mias fio!
Outras vezes, e para o mesmo fim,
intercala no canto o seguinte estribilho:
“Oi, chama, chama,
Que ele vem,
Oi, chama, chama,
Que ele vem!.”
É, de fato, vem. Lá pelas tantas, arria
o Orixá sobre um ogan ou uma gibonan, tomando-lhe, de assalto, o corpo e
incorporando-se-lhe com tal veemência que quase o atira violentamente ao chão.
Levanta-se e, mal se apruma, entra a brincar, isto é, a dançar o que faz
durante muito tempo. Depois, dirige-se o “Pai de Santo” e pergunta-lhe:
- Quê que mias fio qué? Ieu tá aí
Ouve os pedidos dos cafiotos. Um quer um
pouco de boa sorte; outro, um conselho sobre determinado assunto íntimo que lhe
segreda ao ouvido; outro, ainda, pesado, que desfaça o trabalho que lhe
puseram em cima e lhe atrasa a vida;
aquele deseja um remédio para tal doença que o aflige; aquela pede uma
benzedura para o seu pescoço inflamado. E há ainda quem peça muito mais.
O Orixá ouve, discute, atende e, às vezes,
recusa também. Por fim, terminada a sua missão, pede que seja cantado um iman
para despedida, pois deseja se retirar. O “Pai de Santo” ou ele mesmo, tira
o canto. Quase sempre é o seguinte:
“Andorinha,
leva o meu anjo pro céu,
Andorinha,
leva o meu anjo pro céu!”
Mais alguns minutos de dança. De repente, com a mesma violência da incorporação, o Orixá se desprende. O ogan ou gibonan cai, então, redondamente sobre o solo, se um cambondo, que deve estar atento, não o amparar no último instante.
A
RONDA DE OGUN OU DE SÃO JORGE
De todas as cerimônias rituais da Macumba,
a mais interessante, pela originalidade do fato, como pelos detalhes, ao mesmo
tempo cômica e trágica, apavorante e arrebatadora, é a ronda de Ogun, entidade
da ordem dos Orixás, que os “Pais de Santo”, tanto os da linha de Umbanda
como os das diversas outras, identificam com o São Jorge do Catolicismo. É, na
opinião geral, um dos Orixás mais fortes.
Todos os anos, no seu dia, 13 de abril,
faz-se uma grande festa em homenagem a esse Santo. O cerimonial é o mesmo
quanto à abertura dos trabalhos, mas a invocação difere da usada em outros
casos. Um cambondo escolhido para recebê-lo ajoelha-se diante da vela,
e, cabeça pendida para frente estende o braço esquerdo, horizontalmente, em
linha reta. O “Pai de Santo” tira, então, o seu iman:
“Ogun ê ê!
Ogun ê ê!
Depois que todos os fiéis, formando o
coro, alcançam a entoação necessária, o outro cambondo, a um sinal do
“Pai de Santo”, aproxima-se do primeiro e lhe despeja certa quantidade de
pólvora na palma da mão e, em seguida, incendeia-a com um fósforo ou um tição.
(figura 3)
Dá-se uma explosão. Imediatamente baixa
Ogun, apoderando-se do seu corpo, dominando-o por completo. O “Pai de Santo”,
com um novo gesto, suspende o canto e muda o ponto:
“Saravá, Ogun
Saravá (3)
Saravá, minha coroa,
Saravá!”
E o coro responde, com diferença de uma
oitava no tom:
“Saravá, Ogun
Saravá
Saravá, minha coroa,
Saravá!”
Ogun, possuidor do corpo do cambondo,
montado nele, o conduz aos corcovos pela roda, primeiramente acurvado,
equilibrando-se com dificuldade e, depois, aos poucos, aprumando-se, até poder
dançar. O canto continua, entrecortado de quando em vez, pelo “Pai de Santo”
que o reforça, recomeçando:
- É, mias fio! Óia a ronda! Guenta ponto,
mias fio. É, óia Ogun, mias fio, que tá no jongá.
Os fiéis, estimulados pelas exclamações do
sacerdote, alteiam a voz; os tocadores redobram de energia, batendo os
atabaques com mais força; e Ogun, já senhor do equilíbrio, dança com mais
desembaraço. Quem o observa, sente uma sensação estranha, porque vê uma criatura
humana com movimentos de boneco de engonço, e membros que não tem rigidez; o
ritmo é brusco, bárbaro, suave às vezes, outras violento, mas sempre mole e
desarticulado.
Em dado momento, aproxima-se de outro
cambondo, puxa-o com a mesma moleza de gestos, para o centro da roda e,
segurando-lhe as mãos de modo a curvar-se para a frente, esfrega-lhe a cabeça
na sua até que ele, tomando por outro Ogun, recue, executando os mesmos
movimentos desarticulados.
Então, o “Pai de Santo”, pegando pela
lâmina, entrega uma espada a cada um. Transforma-se a dança em um duelo
simulado. Brilham as lâminas no ar, como fuzis dentro da noite, em golpes de
ataque ou de defesa, vibrados sempre com os mesmos gestos estranhamente moles e
característicos. (figura 4)
E a cerimônia, que dura, às vezes, horas a
fio, só termina quando os contendores, arquejantes de cansaço, um após o outro,
aproxima-se da vela e enterram as espadas no chão, dançando ainda. O “Pai de
Santo”, nesse momento, para o canto, bradando:
- Louvado seja Oxalá!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja os Tata!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja os Orixá!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja o céu que nos cobre!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja a terra que nos cria!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja o mar que nos alimenta!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja o mato que nos esconde!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja o Sol que nos esquenta!
- Pra sempre seja louvado!
- Louvado seja a Lua que nos alumia!
- Pra sempre seja louvado!
- E louvado seja, mias fio, Ogun!
- Pra sempre seja louvado!
Findada a série de louvores, canta-se,
então, o iman de despedida:
“Angó, angó, mia cambondo,
Eu vai simbora.
Fica cum Deus,
Cum Nossa Senhora!”
De novo recomeça a dança, mas, ao fim de
vinte a trinta minutos, cada um, de sua vez, desprende-se, deixando os cambondos
extenuados.
Canta-se o ponto de encerramento:
“Encerra a mesa,
Com licença de Congo.
Encerra a mesa,
Com licença de Congo.”
Mais um gesto do “Pai de Santo” e se cala
o coro. Emudecem os atabaques. Está finda a cerimônia.
Notas
do Autor:
(1)
A expressão “Pai de Santo” dada ao sacerdote da Macumba não é correta.
Emprega-se no sentido de ancião que tem conhecimentos e poderes com os quais
pode forçar os santos a arriarem, isto é, a tomarem parte nas cerimônias do
ritual. Um “Pai de Santo”, aliás, o mais inteligente, embora inculto, de quanto
tenho conhecido, dizia-me, certa vez, na sua linguagem rude e pitoresca:
-
A gente anda errado chamando de “Pai de Santo”. Cavalo de santo é o que a gente
é, pois os santos arria em nós.
(2)
Nunca pude obter uma explicação satisfatória da formação do universo.
Interroguei muitos “Pais de Santo” sobre como Oxalá fizera o mundo, mas todos
eles, invariavelmente, me responderam:
-
Fazendo!
(3)
Saravá é corruptela de Salve.
[1] A palavra “bas-fond”, de origem francesa, designa a
“camada degradada da sociedade; escória social, ralé” (Dicionário Michaelis)
.um “ambiente ou grupo social inferior ou marginal” ou, ainda, um “lugar onde
vive um grupo social considerado inferior” (Dicionário Priberam) ou ainda a
“zona de prostituição” (Dicionário Aulete). O autor utiliza esse termo
pejorativo para desconsiderar as manifestações religiosas de origem africana.
Modjubá.
ResponderExcluirSou jornalista e seu seguidor assíduo, aprendo muito com seus vídeos. Considero seu canal no Youtube e seu blog como muito importante e de muito aprendizado para toda comunidade de religião-afro.
Muito obrigado!
ExcluirAxé!