quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O mistério da Macumba
curiosas revelações sobre os ritos africanos no Brasil

Por Carlos Alberto Nóbrega da Cunha


(Matéria publicada no Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 04 de setembro de 1923, p. 1 e 5. O português foi atualizado para as normas vigentes. Notem o preconceito em toda a matéria.)


- Introdução do redatorMacumba é o nome de um instrumento musical, idiofônico, semelhante ao reco-reco, que era usado durante as práticas afro-religiosas, que ao longo do tempo passou a designar a própria prática. Em razão do racismo estrutural e da desconsideração das religiões afro-brasileiras, impôs-se à Macumba um sentido pejorativo, de feitiço, "magia negra", embuste, fetichismo, entre outros adjetivos. No entanto, na mesma época, entre o final do século XIX e início do XX, havia anúncios nos jornais das orquestras de Macumba, que animavam os clubes de dança e as festividades populares. Espera-se que esse artigo colabore para compreender o pensamento de parte da sociedade brasileira no início do século XX e de como essa sociedade olhava para as práticas afro-religiosas.




Um esboço da cosmogonia, segundo os ensinamentos dos “Pais de Santo” (1)

Uma revelação desconcertante para o leitor: os povos bárbaros da África, como os índios selvagens da América, não são fetichistas, nem praticam simplesmente o animismo: são espiritualistas.

Lançada assim, a afirmativa causará espanto, pois a opinião universal – contraditada apenas de maneira vaga por poucos sábios – admite piamente os ensinamentos de missionários que viram feitiço em tudo que se afastava da sua fé ou de viajantes e etnógrafos materialistas que, observando as coisas superficialmente, reduziram a totemismo ou a animismo todas as manifestações religiosas, cujo sentido interno não puderam penetrar.

A verdade, entretanto, é o contrário. E a prova, quanto aos africanos (dos índios tratarei quando se me oferecer outra oportunidade), pode ser encontrada aqui mesmo no Brasil, entre os descendentes dos milhões de escravos que durante três séculos de martírio, amassaram com suor e sangue os alicerces econômicos da grandeza nacional. Eles trouxeram para o solo americano costumes, danças e ritos originários de suas terras e seus descendentes ainda os conservam e praticam na forma quase primitiva, se bem tenham sido influenciados pelo Catolicismo.

Estudando-se esses ritos em torno dos quais já correm lendas, pode-se observar a capacidade criadora de raças inferiores, que não obstante um grande atraso intelectual, tinham alcançado, desde tempos imemoriais, uma alta concepção da vida e do universo, notável, principalmente, pela sua extraordinária semelhança com nossa concepção bíblica, segundo a moderna exegese dos tratadistas do Espiritismo e da Teosofia, fora do espírito dogmático do Catolicismo.

Todas as formas religiosas africanas praticadas no Brasil, com denominações várias e pequenas divergências de detalhes no dogma e no ritual, conforme as regiões de onde procedam, são, na essência variantes da Macumba, rito que me parece a expressão mais primitiva e rudimentar do espiritualismo. Senão, vejamos.

 


O DOGMA

O dogma da Macumba é simples, ao contrário do ritual que, como o de todas as religiões no seu período primitivo, é tremendamente complicado.

Para sua fácil compreensão, convém ficar salientado aqui a existência das variantes a que me referi e que são seitas ou escolas, simples maneiras, ligeiramente diversas, de se interpretar o dogma ou cumprir o ritual, peculiares às diferentes raças e a cada uma das quais os adeptos, entre si, dão a denominação de linha de Umbanda, dos povos de Angola e do Congo, que é a mais conhecida nesta capital e que recebeu mais direta e profunda influência do Catolicismo; a linha do Candomblé, praticada largamente na Bahia pelos indivíduos da raça nagô, oriunda de certa região vizinha do Dahomey, à qual etnógrafos europeus atribuem, não sei por que, uma religião do sangue, cuja natureza, infelizmente não sabem explicar nas suas obras; a linha de Gêge, dos indivíduos da raça do mesmo nome; e outra, ainda, de menor vulto, dada a diminuta porcentagem de representantes de outras raças negras no Brasil.

A linha de Umbanda, suponho, deve ser uma forma eclética, pois parece uma verdadeira fusão das outras linhas, das quais contém inúmeras características. Por esse motivo e pela dificuldade de examinar, num simples artigo de jornal, cada uma delas, de per si, tomo aquela para objeto deste ligeiro estudo.



CONCEPÇÃO DO UNIVERSO E DA VIDA

Religião de povos atrasados e incultos, a Macumba não possui uma bíblia que coordene e transmita a doutrina. O seu dogma está na tradição oral dos adeptos e vem passando, de geração em geração, sendo, por isso, absolutamente impossível assinalar-lhe uma origem, um fundador, uma história.

Tendo feito, no bas-fond[1] carioca, um inquérito meticuloso e paciente que durou anos, cheguei, finalmente, depois de muita observação e muitos interrogatórios, ao seguinte esboço de cosmogonia segundo os ensinamentos dos “pais de santo”:

I – O Universo é único sob dois aspectos: um visível e o outro invisível. Todos os seres – anjos, homens, animais, plantas, pedras etc. – participam dessa dupla natureza e tem, portanto, dois aspectos: corpo e alma, isto é, visível e invisível.

II – Oxalá é o Rei do Universo, divindade suprema, pai e senhor, absoluto de tudo e de todos, cuja vontade criou e mantém o céu, a terra, o mar, os astros e todos os seres. (2)

III – Oxalá é bom porque é pai e é justo porque é bom. Tudo que faz é bom, mesmo parecendo mau para as suas criaturas e útil a elas, porque só ele sabe o que é bom, o que é justo e o que é útil.

IV – Oxalá mora no céu, num palácio maravilhoso e encantado, para lá da Lua, para lá do Sol, ainda mais para lá da região azul das estrelas.

V – É de seu trono, que há de ser deslumbrante pois que é o rei de tudo, administra o Reino por intermédio de uma infinidade de servidores, agentes da Sua vontade, fiéis executores de Suas ordens, que percorrem os quatro cantos do mundo como pássaros, como ventos.

VI – Os servidores de Oxalá são entidades de ordem espiritual, dotadas de poderes proporcionais ao atingidos na hierarquia. São três esses graus: Tata, Orixá e Quiumba. Correspondem, pelas funções na hierarquia do Catolicismo, a: Arcanjo, Santo e Alma.

Os Tatas têm a seu cargo a direção de grandes divisões do Universo e, deles, o maior é o próprio Oxalá, que recebe, por isso, a denominação de Tata Grande. Os Orixás são os zeladores dos reinos da natureza e dos agrupamentos humanos, como os santos católicos são padroeiros de países, cidades e instituições. Os Quiumbas são as almas dos mortos, que, separadas dos seus antigos corpos vagam no espaço, enquanto esperam novo nascimento. O Quiumba nasce para penar. Morre, voltando ao aspecto invisível e, no intervalo de duas vidas, vagueia pelos lugares em que viveu, acompanha e auxilia os parentes e amigos ou persegue os inimigos, se ainda lhes conserva ódio. À proporção que se sucedem as suas reencarnações, melhora, desenvolve-se, adquire conhecimentos e poderes e vai, assim, tornando-se aos poucos em Orixá. Este, por sua vez e pelo mesmo processo, pode chegar a Tata.

VII – Cada Quiumba encarnado, isto é, cada um de nós, não está abandonado sobre a superfície da terra, poque um Orixá, tal como o Anjo da Guarda do Catolicismo e o Protetor do Espiritismo, acompanha-lhe os passos atentamente, procurando orientá-lo no caminho bom e desviando os perigos que o ameacem. Esse Orixá é o Santo de cada um.

 

Por esse esboço que resumi, reproduzindo, com a mais próxima fidelidade, as ideias e até as expressões dos macumbeiros, verifica-se quanto eles se avizinharam da concepção bíblica, criando uma religião espiritualista bastante adiantada, no dogma, pelo menos, relativamente ao atraso intelectual em que se encontram anda hoje.

 

HIERARQUIA DOS ADEPTOS

A hierarquia dos adeptos comporta quatro graus: Cafioto (filho), simples crente que observa e cumpre as regras do rito; Ogan (masculino) e Gibonan (feminino), homem e mulher por cujo corpo, dotado de qualidades mediúnicas, os Orixás e Quiumbas se manifestam nos atos do cerimonial; Cambondo, ogan instruído nos principais mistérios da linha e que, por isso, desempenha as funções de auxiliar ou sacristão do Sacerdote; Pai e Mãe de Santo, sacerdote e sacerdotisa do rito, que conhece os mistérios, dirige as cerimônias, invoca os Orixás e os Quiumbas, faz e desfaz trabalhos.


 

O “CANZOL” (figura 1)

A Macumba não tem organização, nem há, entre as diversas linhas como entre os próprios “Pais de Santo” de uma mesma linha, nenhum entendimento, nenhuma opinião, nenhuma ideia de solidariedade que as ligue num corpo só com um aparelhamento estabelecido, conforme sucede às outras religiões.

Por isso, não há, também, Templos para o culto, nem escolas onde se preparem os candidatos ao sacerdócio. Cada “Pai de Santo” pontifica isoladamente perante o seu povo. Ele mesmo inicia os cafiotos no rito e ensina a mironga da sua língua aos que demonstram aptidão para o grau de ogan ou de gibonan, como prepara estes para cambondos, escolhe, instrui e sagra os futuros “Pais de Santo”. Daí, as pequenas divergências que se observam dentro da mesma linha na interpretação do dogma e na prática ritual.

Todo “Pai de Santo” tem, em sua casa, um compartimento especial, que recebe a denominação de Canzol, reservado para o oratório, no qual ele arma o estado do seu santo, espécie de altar como o das igrejas, contendo imagens e uma infinidade de objetos utilizados no culto ou no preparo dos trabalhos: espadas – símbolos dos poderes dos Orixás de raça branca, como Ogun (São Jorge) e Xangô (São Sebastião); flores, conchas e pedras do fundo do mar – símbolos dos Orixás das águas, como Yamanjá (Yara dos indígenas e Mãe d’Água dos caboclos); arco e flechas – símbolos dos poderes dos Orixás do mato, como Poê, Pombagira, Eixun; espingarda do tipo pica-pau – símbolos dos poderes dos caboclos; paus, bengalas, porretes – símbolos dos poderes dos Orixás do Congo, da Angola e da Guiné. Além desses objetos simbólicos há sempre no Canzol: facas, cachimbos, pólvora, cera, fumo, ervas, sementes, peles e chifres de animais, figas, bentinhos, giz, pedra de cevar, búzios, colares especiais de vidrilho ou de taquarinha, chamados guias de santo e que todo indivíduo, ao ser iniciado no rito, recebe das mãos do “Pai de Santo” e passa a usar, no pescoço, durante o resto da vida.

O Canzol conserva-se fechado comumente e só se abre, nos dias de cerimonial, para a retirada dos objetos do culto ou, em ocasiões especiais, para a realização de trabalhos secretos, como fechamento de corpo e outros, que não devem ser executados diante de todos os fiéis.

 

O RITUAL

O ritual da Macumba é uma série de cerimônias de invocação aos Orixás e aos Quiumbas, empregando-se cânticos, danças, encantamentos e operações mágicas para que eles, incorporando-se ao ogans ou às gibonans, possam entrar em comunicação com os fiéis e atender aos seus pedidos.

Tudo se passa ao ar livre, no terreiro, e, só em caso de chuva ou de receio da polícia, é que se executa dentro de casas e a portas fechadas. Forma-se uma grande roda em que homens e mulheres tomam posição em pé ou sentados em pedras, troncos, tamboretes ou bancos, sem ordem de colocação. Apenas os tocadores de atabaques (tambores cônicos feitos de troncos escavados) ficam todos mais ou menos juntos, devido à necessidade de uniformizar o ritmo, elemento de suma importância no cerimonial.

É, então, que o “Pai de Santo”, depois de ter feito algumas orações no Canzol aparece, acompanhado pelos cambondos e todo paramentado, isto é, metido numa camisa vermelha e com a cabeça enfiada num gorro da mesma cor, tendo nos lados e no forro uma cruz e um friso dourados, coloca-se no centro da roda e dá início ao cerimonial, fincando no chão uma vela acesa entre dois copos contendo água. Ajoelhado ante à vela, sacode com a mão direita e atira à frente o sangôrôrô (meia dúzia de búzios), cantando, ao mesmo tempo, o ponto de licença para abertura da mesa, isto é, da cerimônia a realizar-se, ponto que os fieis, em coro, repetem como uma ladainha. (figura 2)

“Dá licença, Oiê,

Dono do Reino?

Dá licença, Oiê,

Dono do Reino?”

Conforme a posição dos búzios – caindo metade branca, metade preta, ou a totalidade de uma cor só cor – considera-se dada a licença. Se, porém, há desencontro, repete-se a operação mais duas vezes e, segundo o resultado, faz-se ou não a cerimônia.

Dada a licença, levanta-se, suspende-se o ponto que estava sendo cantado e, em silêncio, reza mentalmente, durante alguns minutos, certas orações que só ele sabe e só transmite aos cambondos, quando os sagra sacerdotes. Depois, com o dedo, risca no chão o signo cabalístico do Orixá que vai arriar e começa a cantar, acompanhado pelo coro dos adeptos e pelo ritmo monótono dos atabaques, uma outra oração especial para invoca-lo, porque para cada um há signo e iman próprios. Ao mesmo tempo chama para o centro da roda e coloca, em duas filas, numa os ogans e noutra as gibonans, para a dança, que, então, se inicia e dá a impressão de uma quadrilha bárbara que os indivíduos se movem isoladamente, sem formação de pares, mas mudando de posição segundo o canto como se este marcasse o desenvolvimento do bailado. Os fieis repetem o iman [cântico], acompanhando-o com palmas.

Em pouco tempo começa a exaltação dos sentidos. A ladainha acelera-se, acelerando a dança e transformando a expressão fisionômica dos indivíduos, cujos olhos arregalados e fixos, parecem, então, encobertos por uma névoa vitrificada.

Aproxima-se o momento de descida do Orixá. O “Pai de Santo”, sentindo essa aproximação, cujo sucesso depende, em grande parte, da firmeza e da intensidade do ritmo – pois o que se está fazendo é verdadeiro encantamento magnético, operação empregada em todos os tempos, por todos os povos nos trabalhos de magia – entusiasma os fiéis, excitando-os com exclamações, para mais exaltar o canto e, assim, fortalecer a cadeia formada pela concentração em todas as atenções:

- É, mias fio! É, guenta iman, mias fio!

Outras vezes, e para o mesmo fim, intercala no canto o seguinte estribilho:

“Oi, chama, chama,

Que ele vem,

Oi, chama, chama,

Que ele vem!.”

É, de fato, vem. Lá pelas tantas, arria o Orixá sobre um ogan ou uma gibonan, tomando-lhe, de assalto, o corpo e incorporando-se-lhe com tal veemência que quase o atira violentamente ao chão. Levanta-se e, mal se apruma, entra a brincar, isto é, a dançar o que faz durante muito tempo. Depois, dirige-se o “Pai de Santo” e pergunta-lhe:

- Quê que mias fio qué? Ieu tá aí

Ouve os pedidos dos cafiotos. Um quer um pouco de boa sorte; outro, um conselho sobre determinado assunto íntimo que lhe segreda ao ouvido; outro, ainda, pesado, que desfaça o trabalho que lhe puseram em cima e lhe atrasa a vida;  aquele deseja um remédio para tal doença que o aflige; aquela pede uma benzedura para o seu pescoço inflamado. E há ainda quem peça muito mais.

O Orixá ouve, discute, atende e, às vezes, recusa também. Por fim, terminada a sua missão, pede que seja cantado um iman para despedida, pois deseja se retirar. O “Pai de Santo” ou ele mesmo, tira o canto. Quase sempre é o seguinte:

“Andorinha,

leva o meu anjo pro céu,

Andorinha,

leva o meu anjo pro céu!”

Mais alguns minutos de dança. De repente, com a mesma violência da incorporação, o Orixá se desprende. O ogan ou gibonan cai, então, redondamente sobre o solo, se um cambondo, que deve estar atento, não o amparar no último instante.



A RONDA DE OGUN OU DE SÃO JORGE

De todas as cerimônias rituais da Macumba, a mais interessante, pela originalidade do fato, como pelos detalhes, ao mesmo tempo cômica e trágica, apavorante e arrebatadora, é a ronda de Ogun, entidade da ordem dos Orixás, que os “Pais de Santo”, tanto os da linha de Umbanda como os das diversas outras, identificam com o São Jorge do Catolicismo. É, na opinião geral, um dos Orixás mais fortes.

Todos os anos, no seu dia, 13 de abril, faz-se uma grande festa em homenagem a esse Santo. O cerimonial é o mesmo quanto à abertura dos trabalhos, mas a invocação difere da usada em outros casos. Um cambondo escolhido para recebê-lo ajoelha-se diante da vela, e, cabeça pendida para frente estende o braço esquerdo, horizontalmente, em linha reta. O “Pai de Santo” tira, então, o seu iman:

“Ogun ê ê!

Ogun ê ê!

Depois que todos os fiéis, formando o coro, alcançam a entoação necessária, o outro cambondo, a um sinal do “Pai de Santo”, aproxima-se do primeiro e lhe despeja certa quantidade de pólvora na palma da mão e, em seguida, incendeia-a com um fósforo ou um tição. (figura 3)

Dá-se uma explosão. Imediatamente baixa Ogun, apoderando-se do seu corpo, dominando-o por completo. O “Pai de Santo”, com um novo gesto, suspende o canto e muda o ponto:

“Saravá, Ogun

Saravá (3)

Saravá, minha coroa,

Saravá!”

E o coro responde, com diferença de uma oitava no tom:

“Saravá, Ogun

Saravá

Saravá, minha coroa,

Saravá!”

Ogun, possuidor do corpo do cambondo, montado nele, o conduz aos corcovos pela roda, primeiramente acurvado, equilibrando-se com dificuldade e, depois, aos poucos, aprumando-se, até poder dançar. O canto continua, entrecortado de quando em vez, pelo “Pai de Santo” que o reforça, recomeçando:

- É, mias fio! Óia a ronda! Guenta ponto, mias fio. É, óia Ogun, mias fio, que tá no jongá.

Os fiéis, estimulados pelas exclamações do sacerdote, alteiam a voz; os tocadores redobram de energia, batendo os atabaques com mais força; e Ogun, já senhor do equilíbrio, dança com mais desembaraço. Quem o observa, sente uma sensação estranha, porque vê uma criatura humana com movimentos de boneco de engonço, e membros que não tem rigidez; o ritmo é brusco, bárbaro, suave às vezes, outras violento, mas sempre mole e desarticulado.

Em dado momento, aproxima-se de outro cambondo, puxa-o com a mesma moleza de gestos, para o centro da roda e, segurando-lhe as mãos de modo a curvar-se para a frente, esfrega-lhe a cabeça na sua até que ele, tomando por outro Ogun, recue, executando os mesmos movimentos desarticulados.

Então, o “Pai de Santo”, pegando pela lâmina, entrega uma espada a cada um. Transforma-se a dança em um duelo simulado. Brilham as lâminas no ar, como fuzis dentro da noite, em golpes de ataque ou de defesa, vibrados sempre com os mesmos gestos estranhamente moles e característicos. (figura 4)

E a cerimônia, que dura, às vezes, horas a fio, só termina quando os contendores, arquejantes de cansaço, um após o outro, aproxima-se da vela e enterram as espadas no chão, dançando ainda. O “Pai de Santo”, nesse momento, para o canto, bradando:

- Louvado seja Oxalá!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja os Tata!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja os Orixá!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o céu que nos cobre!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja a terra que nos cria!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o mar que nos alimenta!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o mato que nos esconde!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o Sol que nos esquenta!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja a Lua que nos alumia!

- Pra sempre seja louvado!

- E louvado seja, mias fio, Ogun!

- Pra sempre seja louvado!

Findada a série de louvores, canta-se, então, o iman de despedida:

“Angó, angó, mia cambondo,

Eu vai simbora.

Fica cum Deus,

Cum Nossa Senhora!”

De novo recomeça a dança, mas, ao fim de vinte a trinta minutos, cada um, de sua vez, desprende-se, deixando os cambondos extenuados.

Canta-se o ponto de encerramento:

“Encerra a mesa,

Com licença de Congo.

Encerra a mesa,

Com licença de Congo.”

Mais um gesto do “Pai de Santo” e se cala o coro. Emudecem os atabaques. Está finda a cerimônia.

 

Notas do Autor:

(1) A expressão “Pai de Santo” dada ao sacerdote da Macumba não é correta. Emprega-se no sentido de ancião que tem conhecimentos e poderes com os quais pode forçar os santos a arriarem, isto é, a tomarem parte nas cerimônias do ritual. Um “Pai de Santo”, aliás, o mais inteligente, embora inculto, de quanto tenho conhecido, dizia-me, certa vez, na sua linguagem rude e pitoresca:

- A gente anda errado chamando de “Pai de Santo”. Cavalo de santo é o que a gente é, pois os santos arria em nós.

(2) Nunca pude obter uma explicação satisfatória da formação do universo. Interroguei muitos “Pais de Santo” sobre como Oxalá fizera o mundo, mas todos eles, invariavelmente, me responderam:

- Fazendo!

(3) Saravá é corruptela de Salve.



[1] A palavra “bas-fond”, de origem francesa, designa a “camada degradada da sociedade; escória social, ralé” (Dicionário Michaelis) .um “ambiente ou grupo social inferior ou marginal” ou, ainda, um “lugar onde vive um grupo social considerado inferior” (Dicionário Priberam) ou ainda a “zona de prostituição” (Dicionário Aulete). O autor utiliza esse termo pejorativo para desconsiderar as manifestações religiosas de origem africana.

2 comentários:

  1. Modjubá.
    Sou jornalista e seu seguidor assíduo, aprendo muito com seus vídeos. Considero seu canal no Youtube e seu blog como muito importante e de muito aprendizado para toda comunidade de religião-afro.

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