segunda-feira, 16 de novembro de 2020

15 de novembro é o dia nacional da Umbanda?

Por Mário Filho



Imagem retirada de: https://pqvceassim.files.wordpress.com/2017/11


Segundo a Lei nº 12.644, de 16 de Maio de 2012, o dia 15 de Novembro é o Dia Nacional da Umbanda. 

Essa data se remete ao mito criacional, típico de todas as religiões, que narra os eventos que dão o início a qualquer uma delas. O mito criacional da Umbanda dá conta que em 15 de novembro de 1908, em Niterói/RJ, o rapaz de 17 anos chamado Zélio Fernandino de Moraes teria “incorporado” o Caboclo das Sete Encruzilhadas e este teria dito que no dia seguinte voltaria a “incorporar” em Zélio e criaria uma nova religião, que se chamaria “Umbanda”. 

Muitos autores, que se fiam nesse mito criacional, afirmam que o termo Umbanda nunca havia sido utilizado, sendo que o Caboclo das Sete Encruzilhadas teria sido o primeiro a fazê-lo. No entanto, em 1894, Heli de Chatelain, em seu livro “Folktales of Angola”, registrava o termo Umbanda, mostrando seu significado, como é encontrado em qualquer dicionário Quimbundo (uma das línguas faladas pelo povo Bantu), que quer dizer “cura”. 

Ora, sabe-se que no desenvolvimento do que hoje se chama Umbanda houve dificuldade para se dar a ela um nome “adequado”. Primeiramente se pensou em Embanda (uma corruptela da palavra bantu Imbanda, plural de Kimbanda, que quer dizer “curadores”), porém, segundo o próprio Zélio, em gravação registrada, o nome Embanda “não soava bem”. Houve, ainda, a proposta de se utilizar Alabanda, em homenagem ao Orixá Malê, que Zélio “incorporava” e que dizia ser um malaio muçulmano. Assim, segundo o próprio Zélio, Alabanda significaria “a banda de Alá”, referindo-se a Allah, nome de Deus para os muçulmanos. Ocorre que Orixá Malê só se manifestou em 1923, portanto o termo Umbanda ainda não era o designativo adotado para a “nova religião”. Lembro que Malê vem do idioma iorubá, Ìmàlè, que designa o muçulmano naquela língua. 

Gilberto Velho, Maria Villas-Boas Concone, Renato Ortiz, entre outros, afirmam que a Umbanda se desenvolve a partir dos anos 1930, o que corrobora com que escrevi até agora. 

Ainda assim, com o tempo, essa Umbanda praticada por Zélio passou a ser chamada de “Umbanda Branca e Demanda” (ou, também, “Umbanda Pura”). 

O que pouco se aborda, no entanto, é que momentos antes da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas houve a manifestação de uma outra “entidade”, chamada de Pai Antônio Curador (BRITTO, 2009), que era o espírito de um escravizado. Em que pese esse fato não ser desconhecido da maioria dos autores umbandistas, que o registraram, dá-se pouca importância ao que ele representava, fruto do racismo estrutural de nossa sociedade desde sempre. Pai Antônio é o símbolo do escravo humilde, conformado com sua posição subalterna, que diz que não poderia se sentar em cadeira, “pois lugar de preto é no toco e para ele bastaria um toco para se sentar”. 

Por meio dessa configuração, formou-se “a tríade da simbologia umbandista que a narrativa fundacional do Caboclo das Sete Encruzilhadas procurou consolidar: índio valente [Caboclo das Sete Encruzilhadas], negro humilde [Pai Antônio Curador], branco racional [Zélio Fernandino de Moraes, o espírita]. (BRITTO, 2009) 

Podemos, dos parágrafos anteriores, fazer algumas conjecturas: 1) o termo “Umbanda Pura” nos levar a crer que havia uma “Umbanda Impura”, ou seja, uma prática que não atendia aos anseios da elite branca carioca do início do século XX, que abominava as práticas “fetichistas” dos pretos e que deveria ser extirpada; 2) da mesma forma que a anterior, “Umbanda Branca” denota que existiria uma “Umbanda Preta”, que deveria ser desconsiderada;  3) somente a prática que tivesse a chancela dessa elite, ou seja, que fosse baseada no catolicismo popular, com suas práticas devocionais aos Santos católicos, unida ao pretenso cientificismo do espiritismo kardecista seria “aprovada” e chamada de “verdadeira” Umbanda. 

Como se vê, para que a Umbanda fosse legitimada era necessário que ela quebrasse sua ligação com a África e, por consequência, com qualquer coisa que lembrasse os negros, exceção feita à sua subalternidade, apontada especificamente no comportamento tradicional dos Pretos-Velhos; ademais, era necessário que o mito criacional afirmasse, sem dúvida, essa legitimação: por isso a escolha do 15 de novembro, dia da proclamação da República, como data de sua “anunciação”, bem como a escolha de um Caboclo como porta-voz do “mundo espiritual”, em um momento em que a literatura romântica brasileira e o brasilianismo buscavam estabelecer, no Caboclo (indígena), o símbolo da nação. Para temperar esse caldo, o Caboclo que teria se manifestado no dia 15 de novembro de 1908 não era um simples indígena, mas a reencarnação de um sacerdote jesuíta, o “Frei Malagrida”. Dessa forma, a Umbanda poderia se inserir, de forma legítima, no universo religioso brasileiro, pois estava totalmente de acordo com os anseios dos ideais branco-europeus: era cristã, tinha as bênçãos da Igreja Católica e era espírita (por isso ela se chamava “espiritismo de Umbanda”, denominação pela qual foi conhecida por muitos anos). (SILVA FILHO, 2014) Além disso, o Caboclo não era o "selvagem", o "arredio", que lutava contra o colonizador ou contra os Bandeirantes, mas o indígena que submeteu, que se convertera ao Catolicismo, que abandonara sua tribo; é o "Índio Peri" do romance "O Guarani" de José de Alencar.

Assim, práticas religiosas realizadas desde o Século XVII e que influenciaram diretamente a Umbanda, tais como a Santidade, o Calundu, o Cangerê, a Cabula, a Nbandla e a Macumba, além, é claro do Candomblé “de Caboclo”, Candomblé “de Nação” e o Culto Muçurumim (ou Malê) foram sistematicamente “desaparecidos”, pois eram realizados por indígenas (a Santidade) ou por escravizados ou ex-escravizados. Esse apagamento perdura até hoje e a imensa maioria dos umbandistas não quer discutir esse fato, pois repetem o mesmo discurso do mito da "democracia racial" de Gilberto Freire. Esses saberes foram vítimas do epistemicídio, que pode ser compreendido como a morte de saberes, conhecimentos e culturas de povos, que não são absorvidas pela cultura branca, ocidental (SOUZA SANTOS, 2007), fruto do colonialismo e do racismo. 

Citando a filósofa Sueli Carneiro, atual Coordenadora Executiva do Instituto Geledés e uma de suas fundadoras, podemos dizer que esse espistemicídio é “um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.” (CARNEIRO, 2005, p. 7) 

Continua, a filosófa: “[o epistemicídio é] um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações.” (CARNEIRO, 2005, p. 7) 

Renato Ortiz, no prefácio da 2ª edição do livro “A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira”, afirmou que no final da década de 1970 começou a se esboçar um “fenômeno de re-africanização”, como, por exemplo, a revalorização do Candomblé. No entanto, o autor afirma: “é interessante lembrar que não foi para a Umbanda que esse esforço de valorização se dirigiu. A religião umbandista, ao se definir como nacional, de alguma maneira infligiu uma morte branca ao seu passado negro.” 

Renato Ortiz continua: “como uma religião brasileira, a Umbanda foi obrigada a integrar sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que assina ao negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância branca.” (ORTIZ, 1988, p. 8) 

Sendo, assim, pela Lei, hoje, 15 de novembro, é o dia Nacional da Umbanda, mas essa data não corresponde aos fatos que envolveram a manifestação pública do Caboclo das Sete Encruzilhadas. É mais uma reafirmação do poder da elite branca, racista, esnobe e antropofágica brasileira.

 

 Referências bibliográficas:

   BRITTO, Cristina. O puro e o híbrido: o jogo de alteridades na formação representacional da Umbanda Branca. In: REVISTA CALUNDU - (Re)Existência: relatos sobre existência e resistência afrorreligiosa. Volume 3, Número 1, Jan-Jun 2019, disponível em http://calundu.org/revista, consultado em 15/11/2020.

   ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

   CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese de doutoramento. São Paulo: FEUSP, 2005.

   CHATELAIN, Henri. Folktales of Angola. Whitefish: Kessinger Publishing, 1984.

   SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

   SILVA FILHO, Mário Alves da. CHEGA DE ESTULTICE: estudo etimológico das palavras Umbanda e Kimbanda. Disponível em: https://pensamentovoa.wordpress.com/2015/05/13/94/, consultado em 15/11/2020.



quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Dia do Tradicionalismo

Dia do Ìṣẹ̀ṣe




Há alguns anos, no dia 20 de agosto, celebra-se o “Ìṣẹ̀ṣe Day”. Nesta data os que praticam em sua vida o caminho Tradicional Yorùbá, formado pelo culto aos Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà, festejam.

O nome Ìṣẹ̀ṣe pode ser usado para descrever múltiplas coisas na tradição Yorùbá. Literalmente, a palavra Ìṣẹ̀ṣe quer dizer tradicionalismo, porém ela é representação do conjunto de nossos Progenitores. Todos os Seres Primordiais da Criação são também chamados de Ìṣẹ̀ṣe, o coletivo de todos os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà são Ìṣẹ̀ṣe. É um termo também usado para sintetizar a tradição religiosa yorùbá como um todo; assim, nesse sentido significa tradicionalismo.

Ifá no Odù Ọ̀sá-Ìrẹtẹ̀ diz:
A enxurrada não tem enxada
Mas usa sua boca para escavar o solo até encontrar o barro vermelho
Fez-se a divinação para Ìṣẹ̀ṣe
Que foi a mais alta forma de adoração tradicional em Ìfẹ̀
Mãe é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
Pai é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Ori é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Olódùmarè é, Ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Ìṣẹ̀ṣe é o primeiro a quem devemos propiciar em Ìfẹ̀ antes de receber as bênçãos
Deixe-nos propiciar Ìṣẹ̀ṣe, o pai de todas as propiciações

Neste Odù, Ifá nos ensina a quem devemos prestar nossa reverência e a quem devemos agradecer quando oramos em nosso próprio nome ou em nome de outras pessoas. Além disso, quando formos deliberar sobre alguma questão, precisamos investigar minuciosamente sobre o assunto, ou seja, olhar para todos os ângulos antes de trazer o problema aos nossos Òrìṣà e Irúnmọlẹ̀. A razão é que, em certos casos, o problema pode ser tratado com o auxílio dos Ancestrais ou checando as necessidades do Orí, bem como as relações com os pais e cônjuges, verificando se elas são as ideais.

Esse Odù Ifá nos ensina que não devemos sobrecarregar os Òrìṣà e Irúnmọlẹ̀ quando, muitas vezes, os problemas podem ser resolvidos ao abordá-los de uma forma diferente ou fazendo ajustes no estilo de vida. Além disso, esse Odù faz com que não enfatizemos a importância dos sacrifícios, mas a introspecção e o autoexame. Ifá ensina, ainda, que o modo como a pessoa usufrui de sua vida na Terra deverá ser minuciosamente investigado, bem como verificar se está vivendo de acordo com o seu destino.

No Odù Ọ̀wọ́nrín Ògùndá, Ifá diz:
Fez-se a divinação para Ìṣẹ̀ṣe
O líder da sociedade Orò em Ífẹ̀
Perguntaram, o que é Ìṣẹ̀ṣe?
Òlódùmarè é, Ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Orí é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Ikin Ifá é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe 
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Ilẹ̀ Aiyé é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Mãe é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe 
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Pai é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Vagina é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Pênis é, ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Olúwo é, ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Deixe-nos propiciar Iṣẹ̀ṣe, não o milionário
Por favor, deixe-nos propiciar Ìsẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà
Ìsẹ̀ṣe é o Progenitor de todo ètùtù [apaziguamento]

O Awo Fálọmọ Ifálojú, interpretando esse Odù, nos esclarece: “O significado de Ìṣẹ̀ṣe se torna claro ao se ouvir a recitação desse Odù. Ele esclarece o que é Ìṣẹ̀ṣe e aquilo que o constitui. Os versos estabelecem que Ilẹ̀ Aiyé (Mãe Terra) é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe; os Ikin Ifá (que representam Ifá) são, eles mesmos, Ìṣẹ̀ṣe, bem como os pais e os mais velhos. Estes têm conhecimento, adquirido pela experiência de vida, e devem ter interesse e maturidade para aconselhar e conduzir as pessoas no caminho correto.”

Com esse entendimento podemos ver a correlação existente entre Ìṣẹ̀ṣe e os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà. Se não fosse pela coletividade representada por Ìṣẹ̀ṣe não seria possível entender a essência dos Òrìṣà, ou seja, o conhecimento sobre os Òrìṣà vem de outra fonte, de Ìṣẹ̀ṣe, e se não fosse por Ìṣẹ̀ṣe nunca teríamos conhecido os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà e as formas adequadas de propiciá-los. É Ìṣẹ̀ṣe que nos presenteou com o conhecimento para sermos capazes de honrar nossos Òrìṣà. Se não fosse por nossa ancestralidade, representada pela primordialidade de Ìṣẹ̀ṣe, nenhum de nós saberia da existência dos Irúnmọlẹ̀ e dos Òrìṣà.

Ìṣẹ̀ṣe Làgbà!!!!
Ìṣẹ̀ṣe Làgbà gbogbo wa!!!!
Olódùmarè a gbé wa o!!!!

Mario Filho
Oníwindé Ifáṣọlá Ifárinú Olúsọjí Oyékàlẹ̀

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Culto de Orixá não é adoração a ídolos


Culto de Òrìṣà (Orixá) não é adoração a ídolos

Por Ọba Adéyíká Òjòpagogo (International Council for Ifá Religion)
Tradução Mário Filho




A palavra “ídolo” é derivada do termo grego εἴδωλον (eídōlon) que significa imagem. No continente africano, nunca vi, li ou ouvi algo sobre a existência de uma imagem de Deus, seja na forma de uma figura, escultura, entalhe ou desenho que possa, indubitavelmente, provocar ou promover o pensamento do ser humano a fazer ideia de uma possível “morfologia” (corpo ou forma) de Deus. É muito claro para um yorùbá que Olódùmarè (Deus) é transcendental e, portanto, beira à abominação e autoengano representar Deus em qual forma for. 

Reconhece-se que imagens podem ser concretas ou verbais. Dessa forma, para a mente de todo africano, Deus é a Força Suprema, devidamente reconhecida como real, ativa, viva e onipresente governando a terra e os céus e, de fato, todo o Universo. 

É indiscutível, como explicamos anteriormente, que o modo de “serviço” à Força Suprema feita pelo africano (por iniciativa dos Òrìṣà), por meio de propiciações, que não há “imagem” visível de alguma forma que seja adorada. Objetos da Natureza, cujo benefício de seu uso foi encontrado pelos Òrìṣà (enquanto estiveram na Terra), são utilizados apenas como substrato para magnetizar a essência dos Òrìṣà que estão sendo propiciados. Os yorùbá creem que os Òrìṣà são intermediários entre eles e Deus quando invocados ou chamados (por súplica e outros meios); creem, também, que essa intermediação é desfeita quando os Òrìṣà são ignorados, negligenciados ou abandonados. 

Por óbvio, deve-se reconhecer que há uma diferença entre “cultuar algo” e “estar diante de algo para cultuar”. Assim, a melhor forma de serviço a Deus é conhecida pelos intermediários, que possuem mais proximidade com Ele e estão sempre em Sua Presença. Assim, aceitar, chamar ou identificar a Religião Tradicional Yorùbá como forma de adoração a ídolos requer melhor entendimento a respeito do significado a palavra ídolo, por questão de lógica. Dessa forma, é um mau uso das palavras, feita por pessoas mesquinhas, que chafurdam em escárnio e infundada condenação as quais pertencem a eles quando, especialmente, encontram-se afastadas de pesquisas profundas e significativas daquilo que lhes pertencem. Os africanos não são, de modo algum, adoradores de ídolos em seu modo de culto à Força Suprema, pois agem em consonância com a realidade existencial do homem na terra em face às divindades “et al”. 

No Odù Ìrẹtẹ̀gbè Ifá fala: 
Aquilo com o que nascem não ganha sua própria admiração. 
São os ideais estrangeiros que eles abraçam prontamente. 
Consultou-se Ifá para o anzol que acompanha o peixe (na água). 
Agora, porém, que todos os bens da vida estão fora de nosso alcance, 
Deixe o anzol e nosso Orí atraí-los para nosso proveitoso benefício 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Predestinação e livre-arbítrio no conceito yorùbá de pessoa


Predestinação e livre-arbítrio no conceito yorùbá de pessoa[1]
Ọlátúnjí Ayọọlá Oyèsílé[2]
Tradução de Mário Filho
131years old priestesses living under the OlumoRock Ancient rock in Beokuta city of Ogun State, Nigeria, Africa
Imagem disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:131years_old_priestesses_living_under_the_OlumoRock_Ancient_rock_in_Beokuta_city_of_Ogun_State,_Nigeria,_Africa.jpg

INTRODUÇÃO
Neste artigo, examinamos as aparentes contradições e paradoxos que são inerentes ao conceito metafísico da pessoa no sistema tradicional de crenças yorùbá, especialmente no que diz respeito à questão da predestinação e do livre arbítrio. Os yorùbá acreditam que uma pessoa teve sua biografia ou história de vida escrita antes de entrar no mundo (por meio do nascimento). É essa biografia que a pessoa vem ao mundo para cumprir - como pode ser vista na noção de Orí (cabeça interior / destino), que é descrita de várias maneiras como Ayànmọ́ (destino que está afixado em uma pessoa, que está além do controle humano e não pode ser alterado, uma vez que o homem é criado com ele, permanecendo assim até o fim de sua vida terrena), Àkúnlẹ̀yàn (destino que é escolhido e recebido enquanto se está ajoelhado) e Àkúnlẹ̀gbà (destino que é recebido enquanto se está ajoelhado). As perguntas que surgem de nossa concepção do destino são: Onde, então, é o lugar da liberdade humana em relação às forças metafísicas? A vida do indivíduo é predestinada ou predeterminada? Que atitude o indivíduo adota diante de alguns desses valores conflitantes? Por exemplo, ele simplesmente se resigna ao destino e considera que "o que será, será" ou luta para formar um significado a partir do "fluxo da vida" existente?
Neste artigo se discute que as contradições e paradoxos inerentes ao conceito yorùbá de pessoa são solucionáveis ​​em sua atitude em relação a questões concretas da vida e da existência. A atitude prática dos yorùbá não apresenta a crença na predestinação como fatalista, uma vez que o indivíduo, ainda, escolhe seu próprio plano de vida e trabalha para sua realização.
Em vez disso, sua crença na predestinação é um construto explicativo que proporciona satisfação emocional e psicológica aos yorùbá quando eles não têm razões naturais, físicas, práticas e empíricas para explicar eventos e ações que os afetam.

ANÁLISE DA PREDESTINAÇÃO E DO LIVRE-ARBÍTRIO NA ONTOLOGIA YORÙBÁ
As opiniões dos estudiosos yorùbá variam sobre a questão da predestinação e da liberdade humana. Alguns estudiosos, por exemplo, Wándé Abímbọ́lá[3], mantêm uma interpretação rigidamente fatalista da predestinação, sugerindo, assim, que a liberdade humana é ilusória, porque nem mesmo os deuses podem mudar o Orí [destino].
Para saber por que esse é o caso, vamos considerar a essência do Orí. (Note-se que estamos aqui usando Orí não apenas como a cabeça física humana, mas como a cabeça não-física ou interior conhecida metafisicamente como destino).
Diz-se que o Orí é a essência da sorte e a força mais importante responsável pelo sucesso ou fracasso humano.[4] O Orí governa a vida do indivíduo e se comunica com outras divindades em seu nome. Além disso, diz-se que aquilo que não foi aprovado pelo Orí de alguém não pode ser aprovado pelas divindades.[5] Isso reforça a crença na predestinação, porque o conteúdo da vida de um indivíduo depende da escolha do Orí. Em termos de conteúdo, pode ser uma vida bem-sucedida, uma vida fracassada, uma vida curta ou uma vida abundante.[6]
No que diz respeito à natureza simpatética[7] do Orí, Abímbọ́lá diz que mostra mais simpatia ao indivíduo do que a qualquer deus.[8] Portanto, o Orí é seu deus pessoal e está mais interessado no bem-estar dessa pessoa. Portanto, se uma pessoa precisa de algo, deve primeiro fazer com que seu desejo seja conhecido por seu Orí antes de qualquer outra divindade.[9] E se o Orí de um homem não estiver em harmonia com sua causa, nenhum deus harmonizará com ele e, consequentemente, ele não terá aquilo que deseja. O Orí que foi selecionado para um indivíduo no céu não pode ser alterado na terra e "de fato os próprios deuses não estão em posição de alterar o destino de um homem."[10]
Do exposto, podemos ver que é dada uma interpretação fatalista da predestinação, na qual o indivíduo não tem o direito de exercer qualquer liberdade, uma vez que tudo foi selado pelo Orí [destino] de um indivíduo. No entanto, por mais fatalista que seja, Abímbọ́lá ainda tenta explicar o fato da liberdade humana por Ìwà Pẹ̀lẹ́ (caráter gentil e benfazejo), uma explicação que, em nossa opinião, não explica totalmente a liberdade do indivíduo. Ademais, isso é contrariado por sua afirmação de que a maioria das pessoas escolhe um Orí ruim e que a tentativa de alterá-lo é inútil. Até o ẹbọ (sacrifício religioso), em vez de ser visto como um meio de mudar o destino humano, é visto por Abímbọ́lá como um meio de comunicação simbólica e ritual entre todas as forças do universo.[11]
            A questão da liberdade do homem ou da sua falta de autonomia pode ser colocada assim: “que papel é reservado para os seres humanos no universo yorùbá, onde o indivíduo não pode agir independentemente de seu Orí e onde está à mercê de dois grupos poderosos, benevolente e malévolo, de poderes sobrenaturais a quem ele tem que fazer sacrifícios incessantemente para sobreviver? O indivíduo realmente importa nesse sistema?”[12]
Ìwà Pẹ̀lẹ́, como afirmado anteriormente, é usado por Abímbọ́lá para explicar a liberdade humana. Segundo ele, Ìwà Pẹ̀lẹ́ e outros princípios menores, como àyà (peito) e ẹsẹ̀ (perna), ajudam a resgatar o homem da estrutura autoritária e hierárquica do universo, no sentido de que eles ajudam o indivíduo a regular sua vida e a evitar colisões com os poderes sobrenaturais, por um lado, e com seus semelhantes, por outro.[13] A razão dada para isso é que Ìwà (caráter) é um dos objetivos da existência humana e Ìwà Pẹ̀lẹ́ (caráter gentil e benfazejo) ajuda o indivíduo a alcançar seus objetivos.
O uso de Ìwà Pẹ̀lẹ́ por Abímbọ́lá para explicar o fato da liberdade humana não é exitoso. Isso ocorre porque nos dizem apenas que Ìwà Pẹ̀lẹ́ ajudará o indivíduo a evitar colisões com forças sobrenaturais e viver em paz com outros seres humanos; porém, quando falamos de liberdade humana, não queremos dizer apenas isso; antes, estamos pensando em uma situação em que o indivíduo exerce certa autonomia referente a questões que afetam sua existência. Abímbọ́lá sugere que muitas pessoas que escolhem o Orí errado no Céu fadadas ao fracasso na Terra,[14] e qualquer tentativa de mudar esse Orí ruim é uma luta infrutífera e sem fim para alcançar o impossível. Isso é sustentado pelo seguinte ẹsẹ̀ Ifá:
Bí ó bá ṣe pé gbogbo orí gbogbo ní í sun pósí
Ìrókò gbogbo ìbá ti tán n'ígbó
A díá fún igba ẹni
Tí ń ti Ìkọ̀lé ọ̀run bọ̀wá sí t'ayé
Bí ó bá ṣe pé gbogbo orí gbogbo ní í sun pósí
Ìrókò gbogbo ìbá ti tán n'ígbó
A díá fún Òwèrè
Tí ń ti Ìkọ̀lé ọ̀run bọ̀wá sí t'ayé
Òwèrè là ń jà
Gbogbo wa
Òwèrè là ń jà
Ẹní t'o yan'rí rere kò wọ́pọ̀
Òwèrè là ń jà
Gbogboo wa
Òwèrè là ń jà[15]

Se todos os homens estivessem destinados a serem enterrados em caixões,
Todas as árvores de Ìrókò teriam sido cortadas na floresta
Consultou-se Ifá para duzentos homens
Quando vinham do céu para a terra
Se todos os homens estavam destinados a serem enterrados em caixões,
Todas as árvores de iroko teriam sido cortadas na floresta
Consultou-se Ifá para a luta
Quando vinha do céu para a terra
Estamos apenas lutando
Todos nós
Estamos apenas lutando.
Aqueles que escolheram bons destinos não são muitos
Estamos apenas lutando
Todos nós
Estamos apenas lutando.

O relato acima de Abímbọ́lá mostra que a liberdade humana é uma ilusão diante da predestinação: é claro que parece haver algumas contradições e inconsistências em seu relato. Por exemplo, se o destino não pode ser mudado nem pelos deuses, então qual é a necessidade de Ìwà Pẹ̀lẹ́ e ẹbọ sugerida como panaceia? Talvez o que Abímbọ́lá está tentando nos apresentar é que Orí é um potente fator causal na existência humana. Apesar de sua afirmação, segundo a qual Orí é inalterável e, portanto, a liberdade humana é ilusória, muitos estudiosos tentaram encontrar um equilíbrio entre predestinação e liberdade humana. Ìdòwú (1962), Mákindé (1984), Gbádégeṣin (1998), Ògúngbèmí (1992) e Ọládipọ̀ (1992) mostram que podemos acomodar facilmente a liberdade humana dentro do modelo explicativo de predestinação.[16] Eles sustentam seus argumentos utilizando as seguintes razões: (1) a predestinação é uma espécie de convênio entre duas partes e, se for o caso, as duas partes sempre podem revisar esse convênio; (2) o uso do sacrifício por meio de Ọ̀rúnmìlà, que também pode ajudar a alterar um destino ruim; (3) Ìwà (caráter) desempenha um papel vital também para melhorar ou mudar o destino de uma pessoa. Existem mitos que sugerem que Olódùmarè (Deus) pode ter simpatia pelas pessoas que são bem-comportadas; (4) o livre-arbítrio dos seres humanos é retratado em sua existência cotidiana prática, na qual a diligência, a formação de caráter, a responsabilidade moral e a prudência desempenham papéis vitais; e (5) é até sugerido que, uma vez que cada pessoa se ajoelha, como indivíduo, para escolher seu Orí, sua liberdade foi estabelecida desse período em diante.
            Muitos estudiosos parecem concordar que a predestinação é um modelo explicativo que é utilizado quando faltam explicações naturais para certas ocorrências. É pertinente, no entanto, examinar algumas das maneiras pelas quais a individualidade e, portanto, a liberdade humana foram explicadas, dada a noção de Orí.
A cosmologia yorùbá, argumenta Ògúngbèmí, apresenta a imagem do homem como um indivíduo solitário que é deixado a percorrer seu caminho através de uma variedade de forças, algumas benignas, outras hostis, muitas ambivalentes, buscando aplacá-las. Em todas as suas tarefas, o homem só é auxiliado por seu Orí, destino, escolhido por ele mesmo antes de vir à terra.[17]
Esse posicionamento é apoiado por Ìdòwú, quando diz que é o Orí [cabeça] que se ajoelha diante de Olódùmarè para escolher, receber ou ter o destino fixado a ele. A imagem, portanto, é de uma pessoa ajoelhada diante de Olódùmarè para escolher ou receber.[18] Portanto, somos obrigados a aceitar que, pelo exposto, pressupõe liberdade de escolha, de ação e de responsabilidade moral.[19]
Pode-se argumentar, no entanto, que as várias posições acima não estabelecem completamente a liberdade do homem. Primeiro, Orí (cabeça interior/destino), no sentido metafísico, tem uma natureza paradoxal e ambivalente, no sentido de que faz parte do indivíduo, pois é a cabeça interior de uma pessoa ou o portador de seu destino. Em outro nível, Orí [destino] não faz parte do indivíduo, porque é o que o Ser Supremo (Olódùmarè) impôs a ele, determinando-o ou pelo indivíduo fazendo uma escolha do Orí por trás de um véu de ignorância, pois ele não sabe sobre o Orí que escolherá. Afinal, o indivíduo não construiu o Orí sozinho. Ele teve que escolher entre os vários Orí que já haviam sido feitos.
Em segundo lugar (e esse argumento está relacionado ao primeiro), quando olhamos para vários nomes que um destino individual ostenta ou para os processos pelos quais escolhemos os Orí, não podemos deixar de negar a autonomia do homem. Por exemplo, certas coisas podem ser ditas nos termos Àkúnlẹ̀yàn, Ayànmọ́ e Àkúnlẹ̀gbà. Àkúnlẹ̀yàn significa aquilo que é escolhido enquanto se ajoelha. Embora pressuponha um elemento de escolha do Orí, não há escolha real porque os vários Orí já estavam preparados e o indivíduo está escolhendo sob o véu da ignorância. Então ele tem uma escolha forçada. Há uma lenda que diz que Àjàlá, o oleiro que moldou o Orí, era muito corrupto e, portanto, podia dar um Orí ruim àqueles que não o subornavam. Àkúnlẹ̀gbà significa escolha em que parte dela vem de sua própria escolha, mas há outra que não. Ayànmọ́ significa aquilo que está afixado em uma pessoa, não há escolha e não é muito diferente de Àkúnlẹ̀gbà.
De nossa análise, pode-se tentar argumentar que, no nível metafísico, o indivíduo não tem liberdade e, portanto, não podemos falar sobre responsabilidade moral ou qualquer outra responsabilidade. No entanto, a crença na predestinação se opõe à vida prática do povo yorùbá.
Vemos os yorùbá tentando combinar duas crenças incompatíveis ou tentando fazer uma se conformar à outra. Argumentou-se que a crença na predestinação não é incompatível com a crença no livre arbítrio. Ọládipọ̀, por exemplo, sugere que, embora os yorùbá adotem o determinismo, é impróprio dar uma interpretação fatalista da noção yorùbá de destino.[20] Argumenta que a atitude yorùbá em relação à vida está em desacordo com o fatalismo. O fatalismo é a doutrina que:
Todo evento foi pré-ordenado e as causas dos eventos estão fora de nós mesmos; que o que quer que ocorra, ocorrerá independentemente do que fazemos; que não podemos agir, uma vez que os eventos estão além do nosso controle, que não há alternativas; essa deliberação é ilusória.[21]
Quais são essas atitudes que contradizem o fatalismo, conforme definido acima? Os yorùbá acreditam que o destino pode ser mudado por meio de Ọ̀rúnmìlà; crendo em divinação e sacrifícios para evitar desastres e atrair boa sorte para si mesmos; eles não hesitam em culpar ou elogiar as pessoas por suas ações; e, finalmente, eles trabalham para ganhar a vida.
Os yorùbá exercem um livre-arbítrio que não é incomparável com o determinismo, porque se diz que o livre-arbítrio depende da existência de certas condições que determinam a natureza das ações humanas. Assumimos que, por nossas ações, como treinamento moral, podemos fazer uma pessoa se comportar de certas maneiras. É isso que a liberdade implica, porque mostra que, embora as ações humanas sejam determinadas, pois são produtos de algumas condições antecedentes na história da pessoa, essas ações não são, portanto, sem liberdade.
Ọládipọ̀, portanto, como alguns outros, sugere que se a concepção yorùbá de destino "não é mais do que uma construção ou dispositivo pragmático para explicar fatores desconhecidos ou ocultos na existência humana, então isso parece ser uma mera extensão de causas naturais.”[22]
Em uma explicação relacionada, Gbádégeṣin afirma que os yorùbá não se contentam em explicar ações humanas baseadas apenas em ações naturais. Isso ocorre porque se caráter, esforço, sacrifício e dinamismo são essenciais para o sucesso, então o conceito de destino não terá nenhum atrativo para eles. Ele crê, no entanto, que os yorùbá não estão prontos ou preparados para eliminar o conceito de destino de sua existência cotidiana porque, em última análise, "nem o bom caráter, nem o dinamismo, nem o esforço garantem um sucesso que não esteja incluído no destino de alguém".[23] Devemos observar que, embora a posição de Gbádégeṣin permita a liberdade em um extremo, ela nega no outro, pois todas as explicações devem, em última análise, ser atribuídas ao destino.[24]
Pode-se argumentar que a crença yorùbá na predestinação e no livre-arbítrio é complexa. O que temos é uma situação em que o yorùbá médio abraça predestinação, determinismo e pragmatismo. Por exemplo, Mákindé argumenta que o sucesso ou o fracasso na vida depende não de ser capaz ou incapacitado ou de ter escolhido um Orí bom ou ruim, mas também do uso de capacidades mentais.[25] Portanto, como o objetivo de todo homem é ter sucesso na vida, é preciso combinar os fatores metafísicos do Orí com os fatores físicos, como o corpo e as habilidades mentais. Em outras palavras, uma pessoa é pragmática se for capaz de combinar os vários fatores de tal maneira que a conduzam ao seu sucesso na vida.
Portanto, podemos dizer, nas palavras de Owómóyèlá que "os yorùbá são um povo pragmático que deposita uma grande confiabilidade na prudência.”[26] Ser pragmático deve ser entendido como significando que os yorùbá enfatizam a prudência em assuntos que dizem respeito ao seu bem-estar.
            O que vale ressaltar é que os yorùbá acreditam tanto em agentes humanos quanto em metafísicos a respeito de sua existência. O yorùbá crê em agentes humanos porque, como ser racional, ele desempenha um papel importante na consecução de certos fins. Por isso, ele trabalha, comporta-se bem na sociedade e se associa a outros seres humanos. Em tudo isso, ele exerce sua liberdade. Isso, também, o torna primeiramente um determinista, porque ele acredita que certas causas são responsáveis ​​por eventos particulares. Sua liberdade o guia na escolha das coisas apropriadas para fazer.
Além disso, para o indivíduo yorùbá, os agentes metafísicos são de importância secundária e de último recurso. Ele apela, por exemplo, ao seu Orí (cabeça interior / destino) quando seus esforços fracassam ou quando ele é dominado por certas sucessos. O Orí também é de último recurso, porque todos os esforços, se eles levam ao sucesso ou fracasso, estão finalmente situados nesse agente metafísico. A razão para isso é, talvez, porque ele acha que a existência transcende o mundo físico e a antecipação da morte o leva a pensar em uma força impressionante que direciona toda a sua experiência.
           
CONCLUSÃO
Embora possa parecer que a crença yorùbá na predestinação e no exercício da liberdade, como vista na vida prática, seja contraditória, paradoxal e inconsistente, nossa análise até agora sugere que não. A crença é bastante abrangente no sentido de que abarca os aspectos físicos e não físicos do homem; em outras palavras, “neste mundo” e no “outro mundo”, e é aqui que reside o pragmatismo dessa visão. O indivíduo quer uma explicação para tudo que ocorre na vida para ele e para os outros. E se a crença nos agentes metafísicos produz resultados positivos ou negativos, ajuda-o, no entanto, a consolidar sua crença como um ser em um mundo misterioso, onde as soluções não podem ser prontamente fornecidas a todos os problemas por meio do esforço humano somente.
Dito tudo isso, notemos rapidamente que com os avanços registrados na ciência e na tecnologia - especialmente por meio da neurociência, biotecnologia e muitas outras pesquisas de base psicológica, agora se entende muito sobre o comportamento humano e o lugar da humanidade no mundo. Isso pode tornar inválidas e vazias aquelas interpretações fatalistas do destino humano por estudiosos dos sistemas tradicionais de crenças. No entanto, também devemos observar que, apesar dessa percepção científica do comportamento humano, não se pode negar que existem certas questões fundamentais sobre o homem que não são passíveis de explicação científica. Por exemplo, perguntas como: Qual é a essência, o propósito ou o objetivo da vida? Por que estou no mundo? O que acontece com a ẹ̀mí (o princípio vital) quando um homem morre? E como alcançamos a felicidade?
As perguntas acima, ao mesmo tempo em que tornam atraentes e relevantes outras fontes de sondagem para a vida humana (como as metafísicas e religiosas), também tornam problemática a interpretação da ciência como solução definitiva para a situação humana. Talvez as questões levantadas aqui exijam mais pesquisas multidisciplinares.




[1] Publicado originalmente no Journal Philosophy, Culture, and Traditions. University of Ibadan. Vol. 2, 2003
[2] Doutor em Filosofia. É professor da Universidade de Ìbàdàn, Estado de Ọ̀yọ́, Nigéria.
[3] W. Abimbola, "Iwapele: The Concept of Good Character in Ifa Literary Corpus", in Yoruba Oral Tradition, ed. W. Abimbola (Ibadan: University Press, 1975); W. Abimbola, IFA: An Exposition of Ifa Literary Corpus (Ibadan: Oxford University Press, 1976).
[4] Abimbola, "Iwapele", p. 390.
[5] Ibid.
[6] Abimbola, IFA, p. 133.
[7] Simpatética pode ser entendida como existir ou operar por meio de uma afinidade, interdependência ou associação mútua; inclinações ou disposição de alguém; agir ou ser afetado por, da natureza de, ou pertencer à uma afinidade especial ou relação mútua; conforme o gênio, a natureza, a essência de. N.T.
[8] Abimbola, IFA, p. 133.
[9] Ibid.
[10] Ibid, p. 146.
[11] Abimbola, "Iwapele," p. 392.
[12] Ibid.
[13] Ibid.
[14] Abímbọ́lá, IFA, p. 146.
[15] Ibid. p. 147.
[16] Ver: S. Gbadegesin, "Eniyan: The Yoruba Concept of Person", in The African Philosophy Reader, ed. P. H. Coetzee and A. P. J. Roux (London: Routledge, 1998); E. B. Ìdòwú, “Olódùmarè: God in Yoruba Belief” (London: Longrnans, 1962); M.A. Makinde, "An African Concept of Human Personality: The Yoruba Example, "Ultimate Reality and Meaning”, Vol. 7 (1984); S. Ogungbemi, "An Existentialist Study of Individuality in Yoruba Culture; Orita, XXIV/2 (1992); O. Oladipo; "The Pragmatic Humanism of Yoruba Culture", Journal of African Studies, Vol. 8, No.3 (1981).
[17] Ogungbemi, p. 105.
[18] Ìdòwú quoted by Ogungbemi, Ibid.
[19] Ibid.
[20] Oladipo, p. 43.
[21] Reuben Abel citado por Oladipo, Ibid.
[22] Oladipo, p. 46.
[23] Ibid.
[24] Gbadegesin, p. 167.
[25] Makinde, p. 198.
[26] Owomoyela, 1981, p. 127.

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