quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Cabula e Macumba

CABULA E MACUMBA[1]

Valdeli Carvalho da Costa


Introdução do editor do Site: Resolveu-se trazer esse artigo do Prof. Dr. Valdeli Carvalho da Costa, originalmente publicado na Revista Síntese (da Faculdade Jesuítica de Belo Horizonte, no terceiro quadrimestre de 1987), para que os estudiosos das religiões afro-brasileiras tivessem um interessante material de estudo, no qual se pode ver as semelhanças que existem entre a Cabula, Macumba, Umbanda e Quimbanda. O autor foi professor do departamento de teologia da PUC-RJ e defendeu sua tese de doutorado em Roma, em 1981, intitulada "Umbanda - Os Seres Superiores e os Orixás/Santos". Por se tratar de uma revista editada em 1987 ela não está disponível para acesso em seu sítio de Internet.





RESUMO

O artigo trata do culto de origem banto-angolana denominado Cabula que floresceu em fins do século passado na área do Estado do Espírito Santo (Brasil) e foi descrito pela primeira vez pelo Bispo de Vitória Dom João Batista Corrêa Nery. Fundando-se em Nery e em outras fontes até agora não exploradas, o autor analisa minuciosamente o culto e o ritual da Cabula e descreve as suas particularidades.

A Conclusão ressalta a importância que o estudo da Cabula apresenta para a identificação das fontes da expressão religiosa banto no Brasil e para a compreensão da atual Macumba.


INTRODUÇÃO

No fim do século passado, tem-se notícia da organização de um culto de origem banto-angolana na área do Estado do Espírito Santo, conhecido com o nome de Cabula e descrito sumariamente pela primeira vez pelo então bispo local, D. João Batista Corrêa Nery na Carta Pastoral despedindo-se dos párocos da Diocese do Espírito Santo. 

O relato de D. Nery deixa ver inúmeras identidades entre a Cabula e a Macumba carioca, esta, na época, ainda não estruturada como culto, nem designada com tal nome. A descrição da Cabula por D. Nery chamou-nos a atenção, como já o fizera a Arthur Ramos (1951, p. 103-107) e Roger Bastide (1968, p. 286) para as inúmeras semelhanças entre o culto da Cabula e os ritos da Macumba do Rio. Ramos e Bastide acenam a algumas dessas semelhanças. Nossas pesquisas permitiram descobrir um elenco maior de pontos em comum não elaborados nem por A. Ramos nem por R. Bastide. Face a esta constatação, pareceu-nos útil, para o aprofundamento dos estudos afro-brasileiros, desenvolver os dados por nós encontrados, que patenteiam, com grande riqueza de matizes, o liame entre a Cabula e a Macumba, como inflorescência tardia do aparentemente morto rizoma[1] cabulístico. Analisemos os dados de D. Nery, confrontando-os com os nossos.

D. NERY E A CABULA

Em suas visitas pastorais, D. Nery descobriu em sua Diocese, ao norte do Estado do Espírito Santo, nas cercanias da cidade de S. Mateus, "três freguesias largamente minadas por uma seita misteriosa" (Nery, 1963, p. 5) que lhe parecia de origem africana. A descoberta motivou-o a tentar desvendar o mistério com que era celebrado o culto. Com efeito, convocou todas as pessoas que lhe pudessem fornecer informações. Obteve-as de todas as classes sociais, com minúcias sobre as cerimônias. Durante os quinze dias em que permaneceu na região, ocupou-se principalmente do assunto (Nery, 1963, p. 16).

Muitas das informações vieram-lhe diretamente, até de ex-cabulistas, não obstante o risco de vida a que se expunham ao dá-las, já que a Cabula obrigava seus adeptos a manterem "segredo absoluto" a respeito do culto, sob pena de morte por envenenamento (Nery, 1963, p. 5). Isto explica o tom misterioso e tímido, com que muitas informações foram dadas, como informam pessoas a par dos relatos. Através desses informantes soube que antes da Abolição da escravatura o culto era praticado apenas por negros e mui reservadamente. Após a Lei Áurea, a seita se generalizou, tendo chegado a mais de oito mil adeptos entre Brancos e Negros. Na época em que pesquisava e escreveu sobre o assunto (1901) o culto ainda tinha grande número de iniciados e adeptos, que o praticavam nas três freguesias, nas matas vizinhas à cidade (Nery, 1963, p. 16).


O CULTO

Segundo Olga G. Cacciatore (1975), a palavra Cabula seria uma deformação da palavra "cabala", chegada até os Negros bantos, através dos malês, de cultura muçulmana. Um culto afro-brasileiro de características sincréticas, com traços de cultura cabinda, angola e muçulmi, por influência malê, identificável pelo gorro usado pelos participantes do ritual.


TRAÇOS CARACTERIZANTES

Nestes, há divergências entre o relato de D. Nery, que tomamos por base desta análise, e as informações recentes de Olga Cacciatore (1975). Luiz da Câmara Cascudo não se refere à Cabula em seu Dicionário do Folclore Brasileiro (1980), tornando-se difícil saber se Cacciatore dispôs de fontes outras a nós ainda inacessíveis. Nesta aporia, apresentaremos as informações segundo as fontes, sem podermos ajuizar da precedência de uma sobre a outra.

Cafioto era o termo geral usado para designar os adeptos da Cabula. Este termo já é a primeira identidade entre a Cabula e a Macumba carioca. Magalhães Corrêa em "O Sertão Carioca" (p. 217-221), informa que esse era também o termo usado para designar os primeiros adeptos da Macumba (Bastide, 1960, p. 286-287). Os camaradas eram chamados de cambas (kambas), palavra de origem kimbundo, significando "canriarada". Se homens, chamavam-se mucambos, se mulheres, macambas. Os iniciados eram os camanás, distinto dos caialos, os estranhos, os profanos (Nery, 1963, p. 9]. O termo camaná também era usado para designar irmão de culto. O local das reuniões chamava-se camucite.

Liturgicamente usavam camisa e calça brancas e pés descalços. Aqui temos outra semelhança entre a Cabula e a Macumba. O traje ritual masculino da Macumba é o mesmo da Cabula: calça e jaleco branco e pés descalços. Hoje, nos terreiros de Umbanda de influxo kardecista já se admite sapato tênis branco. Olga Cacciatore informa que na Cabula usavam um gorro (camolelê) na cabeça, à muçulmana, e "largos cinturões com amuletos". No ritual entravam espelhos, pedras, cachimbos, infusões de raízes, etc., além de sinais cabalísticos riscados, tais o signo de Salomão, cruzes, junto com velas acesas. Nisto também há inúmeras correspondências com os ritos da Macumba, na qual são usados cachimbos com fumo apresentados às “Entidades” que “baixam” durante o transe dos filhos-de santo. Estas “Entidades” “incorporadas” após saudarem o altar, o gongá ou congá, o chefe do terreiro, o “pai” ou “mãe-de-santo” e os tambores, os atabaques ao retornarem ao local que lhes está destinado no grupo do iniciados, devem fazer, hoje, sobre a táboa-de-pontos, e no passado, no chão, o ponto-riscado próprio da “entidade” “incorporada”, uma como assinatura de autoconfirmação de sua presença. Esta prática da Macumba coincide com os sinais cabalísticos citados por Olga. Os pontos-riscados na atual Macumba são formados pela composição e, às vezes superposição, de "estrelas de Vai" nos terreiros chamados de "signo de Salomão" — dois triângulos superpostos invertidamente — cruzes, meias luas, estrelas de cinco pontas, flechas, raios, etc, identicamente ao que se fazia na Cabula.

"Mesa" era o nome dado à reunião dos cabulistas. Os cultos, "trabalhos" ou "mesas" realizavam-se nas matas. Aqui, outra identidade com a Macumba. O mesmo nome "trabalho" é usual na Macumba, para designar os rituais mais secretos, semelhantemente à Cabula, realizados também "nas matas". O chefe de cada mesa chamava-se embanda, que é o nome do sacerdote nas religiões bantos. Os chefes dos terreiros de Macumba, em torno de 1934, quando Arthur Ramos descreve o terreiro do velho Honorato, chamavam-se também embandas, Umbandas ou pais-de-terreiro (1940, p. 121). Merece ressaltar que o termo Umbanda será futuramente a designação de um dos ramos da Macumba, após o seu desdobramento, por influência do Espiritismo Kardecista. Na Cabula, como futuramente na Macumba, o embanda era o chefe e doutrinador da comunidade.

Em cada mesa o embanda era auxiliado por um cambone. A palavra cambone/o/a, provavelmente, procede do kimbundo ",kambundu" com o significado de negrinho, que em muitos Candomblés de estrutura congo-angolana e nos Candomblés de Caboclo designam o tocador de atabaques . Também este termo, cambono, com a mesma função de "auxiliar" do pai-de-santo, encontra-se nos terreiros de Macumba, continuadas nos de Umbanda e Quimbanda (V. C. Costa, 1983, p. 579). É o nome dado ao filho/a-de-santo, escolhido/a pelo Pai ou Mãe-de-santo para acolitar uma “entidade” que tenha “baixado” em uma gira. Ao cambono compete acender o charuto, o cachimbo, o cigarro ou a cigarriíha e entregá-los acesos à “entidade” correspondente: Preto-velho, Cabocio, Exu ou Pombagira “incorporados”. Servem-lhes as bebidas prescritas no ritual, a saber: vinho tinto ou moscatel para os Pretos-veihos, cachaça, para os Exus e, recentemente, aniz, para as Pombagiras. Devem acender as velas, anotar as receitas prescritas pelas “entidades” para os consulentes, assim como, traduzir para estes, o jargão usado por essas “entidades”.

Na Cabula a reunião dos camanás formava a engira. Esta palavra igualmente, com a sílaba "en" sincopada, se perpetua na Macumba. "Gira" é um dos termos usados para designar uma cerimônia cultual da Macumba. É possível que na Macumba e Umbanda hodierna a expressão proceda da "engira" cabulística, assim como aproximada do verbo português "girar", andar à roda, mover-se circularmente, rodopiar, porque as duas modalidades comportamentais verificavam-se no antigo ritual da Macumba. O ritual se desenvolvia com os adeptos dançando e "girando" num grande círculo, uns após os outros, em fila indiana, como ainda hoje se vê em alguns candomblés e sessões de Umbanda, realizadas nas matas, como presenciamos várias vezes. A segunda acepção da palavra "girar": — rodopiar — girar sobre si próprio, também se ajusta, porque assim se comportam os adeptos, quando entram em estado de transe. Rodopiam cambaleando, seguindo a fenomenologia precursora do transe, assim como o fazem, quando já “possuídos” pelas “entidades”, o "Tatá".

Na Cabula, os “espíritos” que se acreditava incorporarem nos iniciados, eram chamados de tatá, palavra que em dialeto kimbundo significa "pai". Era um “espírito familiar” bom, que supunham se apossar de um iniciado e assim, mais de perto, o dirigir em suas necessidades temporais e espirituais. É a continuação do culto banto aos ancestrais tribais através do transe em 'estado de possessão'.

A palavra "tatá", agora com acentuação paroxítona "Táta", também permanece na Macumba e se perpetua na Umbanda mais fiel às tradições angolanas. O termo significa não mais os espíritos dos ancestrais, que se supunha “incorporar” nos iniciados da Cabula, mas passou a designar na Macumba, Umbanda e Quimbanda de tradições angolanas "o grande sacerdote", o grande chefe de terreiro ou de terreiros, pessoa de grandes conhecimentos do ritual e do culto. 

Entre 1971 e 1972, tive ocasião de entrevistar no Rio de Janeiro, Tancredo da Silva Pinto, falecido algum tempo depois, considerado no meio umbandístico o grande "Táta" de Inquice, do ritual Omolocô. A designação "tatá" para os espíritos de ancestrais protetores sofreu, assim, uma modificação acomodada ao processo histórico de perda progressiva da memória ancestral, em consequência da vinda dos Bantos como escravos para o Brasil. Nos três séculos de vida escrava, a memória coletiva banto esfumaçou a individualidade dos ancestrais tribais remotos. Foram esquecidos e substituídos pelo culto dos antepassados mais recentes, falecidos no Brasil, durante o período de escravidão. Mas, mesmo estes, na vida urbana dos ex-escravos, logo perderam a própria individualidade, tornando-se apenas arquétipos estereotipados, hoje designados e cultuados com o nome vago Pretos-velhos, com uma pseudo-individuação: Pai Francisco de Aruanda, Pai Joaquim do Congo, Maria Conga, Mãe Benedita etc. Isto, nos terreiros de Macumba, como nas atuais Quimbanda e Umbanda. Constituem uma das várias linhas das almas cultuadas.

A palavra "Táta" assumiu também outra variante de sentido, como título de orixás, forças da natureza, advindos do Candomblé para a Macumba. Assim, o orixá fálico e mensageiro dos demais orixás no Candomblé, Exu, por vezes é chamado de Tata Veludo; Oxóssi, o orixá dos caçadores é o Tata das Matas; Xangô, na África, o orixá dos meteoritos, do raio e do trovão e, atualmente, no Rio de Janeiro, orixá da justiça e das pedreiras, é o Tata da Pedreira (V. C. Costa, 1983, 249-266).


O RITUAL

Na descrição de D. Nery, o ritual secreto por vezes era realizado em determinadas casas. Porém mais comumente, "nas florestas", a altas horas da noite (Nery, 1963, p. 6). Esta informação se harmoniza também com o ritual da Macumba e da Umbanda angolana. Algumas festas rituais, como a de Oxossi, sincretizado com S. Sebastião ou de Ogum, com S. Jorge, no Rio de Janeiro frequentemente, têm a primeira parte do ritual realizado nos terreiros, do início da noite à madrugada, continuando após, na madrugadinha da mesma noite, ou em outro dia, nas matas, onde concluem o ritual, com oferendas às entidades, incluindo a matança de animais, como presenciamos nas matas da Gávea, na cidade do Rio de Janeiro, pela Tenda Espírita S. Bernardo e Pena Branca, em 1972, para comemorar Ogum/S. Jorge. 

Essa prática de ter rituais em "casas" - hoje, nos terreiros - e na "mata" é outro traço da Cabula que se perpetuou na Macumba.

Na Cabula, “à hora aprazada, todos de camisa e calças brancas, descalços, uns a pé, outros a cavalo, com o embanda à retaguarda, dirigiam-se silenciosos ao templo, o camucite”. Um camaná ou um cambone ia à frente, conduzindo a mesa, isto é, a toalha, a vela e pequenas imagens. Em determinado ponto do caminho tomavam uma vereda, só conhecida dos iniciados, para chegar ao camucite, o sítio sob uma frondosa árvore, no meio da mata.


PRELIMINARES

Uma vez chegados, limpavam no local uma área circular de uns cinquenta metros de diâmetro. Faziam uma fogueira e instalavam a mesa do lado do oriente, rodeando as pequenas imagens de velas, chamadas esteireiras simetricamente dispostas. As esteireiras eram acesas ritualisticamente: a primeira, a leste, em homenagem ao mar, Carunga, a segunda, a oeste; a terceira ao norte; a quarta, ao sul; as restantes, em torno do camucite. Carunga, homenageado com a primeira vela é a corruptela de kalunga, o mar ou oceano em língua kimbundo. O termo ainda é usual nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda, com o mesmo significado, acrescido, porém do qualificativo "grande" — a carunga grande — para diferenciá-lo do cemitério: a carunga-pequena.

Segundo D. Nery, havia "duas mesas capitulares: a de Santa Bárbara e a de Santa Maria, subdividindo-se em muitas outras, com as mesmas denominações" (Nery, 1963, p. 6). Além destas, informa ter recebido esclarecimentos, não confirmados, da existência de uma terceira mesa, a de Cosme e Damião, "mais misteriosa e mais central e que exercia uma espécie de fiscalização suprema sobre as duas outras e cujos iniciados usavam, nas reuniões, compridas túnicas pretas, que cobriam o corpo todo, desde a cabeça até os pés, à semelhança do saco dos antigos penitentes" (Nery, 1963, p. 6). A respeito dessas "mesas diretoras" da Cabula e sua continuação na Macumba, Jacy Rego Barros (1939, p. 70), numa série de palestras dadas, informava que "As mesas diretoras do cerimonial, que se encontram nas sessões cabulistas, e que se acham presentemente em todas as Macumbas, mostram-nos uma direção litúrgica bem paralela á do ritual maçônico".

A Cabula, cuja finalidade cultual é a mesma da Macumba e do Catimbó, deles difere profundamente nas realizações, com o seu Umbanda[2] à frente, dirigindo cerimônias muito sacerdotalmente, no camucite, pois esse é o ambiente. (BARROS, 1939, 69-70)


INÍCIO DO RITUAL

O embanda descalço, com um cinto de rendas alvas e delicadas, se não estivesse com o Camolelê (uma espécie de gorro) à cabeça, amarrava-a com um lenço (Nery, 1963, p. 6-7,9). Seguindo o exemplo do embanda, faziam o mesmo os camanás. Em alguns terreiros de Macumba e até de Umbanda mais fiéis às tradições africanas, ainda presenciei esta prática de ajustar um lenço dobrado em fita, em torno da fronte, amarrando-o atrás à cabeça. A prática está desaparecendo, não obstante a sua utilidade. Amarra-se o lenço à testa para impedir o suor descer sobre os olhos, em consequência da sudação provocada pela agitação decorrente da entrada em estado de transe. Provavelmente esta era também a razão da mesma prática na Cabula, porque também nela, como veremos adiante, os adeptos do culto agitavam-se ao entrarem em estado de transe.

Iniciava-se, a seguir, a oração preparatória, rezada de joelhos diante da mesa. A prática da oração preparatória ainda hoje se repete nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Atualmente, é designada como Oração de Abertura dos Trabalhos. Pode ser feita de joelhos, à muçulmana, ou em pé, voltados para o altar (na Cabula, denominado mesa, nos terreiros atuais, gongá ou congá e nos primórdios da Macumba, canzoá, como informa Magalhães Corrêa, p. 217-21).

A Cabula reintensifica o aspecto fitolátrico do culto, e realiza reuniões noturnas e secretas, nas lareiras abertas em redor de árvores sacralizadas, como a gameleira, sessões a que são chamados os componentes do grupo religioso, ou sejam os camanás; sessões que têm ritos aproximados das formas secretas de religiões outras, que afirmam mesmo qualquer influência islamita, apontando um oriente iniciático que êles não sabem onde realmente se encontra. (BARROS, 1939, 69-70)

Após a oração preparatória, o embanda se erguia, elevava os olhos ao céu, concentrava-se e entoava o primeiro cântico, denominado nimbu. Estes cânticos rituais, hoje, nos atuais terreiros de Macumba são denominados pontos-cantados.

Eis o primeiro nimbu:
Dai-me licença, Carunga
Dai-me licença, tatá
Dai-me licença, baculo
Que o embanda qué quendá (Nery, 1063, p. 7).

O nimbu dirige-se ao mar (Carunga), aos espíritos de ancestrais (tatá) e aos baculos ou bacuros, que eram "espíritos da natureza, jamais tendo incarnado. Segundo O. Cacciatore, o termo proviria da expressão iorubá "igbàkúrò" isto é salvador (p. 61). Parece que os baculos tinham representação estatuária, pois D. Nery afirma que o termo designava pequenas imagens. Talvez as que estavam sobre a mesa fossem esses baculos. Além de estátuas, o termo segundo D. Nery, designava também a "raiz", como veremos logo a seguir, cujo suco era utilizado no ritual (Nery, 1962, p. 9). A nosso ver, provavelmente o termo era estendido à raiz – esta talvez um alucinógeno — porque a ingestão do seu suco favorecesse a entrada em estado de transe, ou seja, a suposta possessão pelos baculos. Às três categorias de "seres" nomeados no nimbu pedia-se licença para se iniciar o ritual: o embanda poder "quendá", isto é funcionar (Nery, 1963, p. 9).

O nimbu era acompanhado pelas quatan ou liquaqua, as palmas ritmadas dos camanás. Este procedimento ritual ainda é usual nos atuais terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Todo o ritual é acompanhado de pontos-cantados ritmados por palmas, e, liturgicamente, dançados, pelos filhos-de-santo, com uma ginga de corpo, no local em que se encontram. Como na atual Macumba, também na Cabula, o ritmo das palmas era muito importante. A ausência delas por parte de algum camaná era objeto de observação do embanda ao cambone.

— "Por conta de quem camaná fulano não bate caliquaquá?"

O cambone respondia: - "Por conta de Ca-ussê" (Nery, 1963, p. 7)

O uso do prefixo "ca" precedendo as palavras foi interpretado por D. Nery como uma "gíria" para dificultar a compreensão do que era falado no ritual. Na realidade, como observou R. Bastide (1960, p. 285), o "ka" é um prefixo classificatório banto, conservado na Cabula antes das palavras portuguesas.


A "POSSESSÃO" DO EMBANDA

Pelo relato de D. Nery, após o primeiro nimbu, o embanda entrava em estado de transe, pois informa que nesse momento "o embanda em contorsões, virando e revirando os olhos [fazia] trejeitos, [batia] no peito com as mãos fechadas e, compassadamente, emitindo roncos profundos, [soltava], afinal, um grito estridente, horroroso" (Nery, 1963, p. 7). Essa é a fenomenologia observável em muitos iniciados da Macumba, que se creem possuídos pelos espíritos de homens depravados, segundo a metamorfose realizada nos terreiros de Macumba, por influência do Espiritismo Kardecista, sobre o mítico orixá fálico e mensageiro dos demais orixás, Exu.

Na sequência ritual da Cabula a entidade 'incorporada' no embanda, era objeto, a seguir, de homenagens, como ainda hoje se pratica nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. O cambono trazia à entidade 'incorporada' um copo de vinho e uma raiz. O embanda mastigava a raiz e bebia o vinho. Este pormenor importante fornece-nos uma pista para presumir qual a entidade 'baixada' no embanda. possivelmente um tatá, o 'espírito' de um ancestral - hoje, denominado de Preto-velho — e não um bacuro. Por que? Pelo tipo de bebida oferecida: "um copo de vinho". O vinho moscatel, ainda hoje, é a bebida oferecida aos Pretos-velhos, quando 'baixam' nos filhos-de-santo dos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda. Se fosse Exu, seria cachaça. A fenomenologia do estado de transe, contudo, se aproxima mais do estado de 'possessão' de Exus, que dos Pretos-velhos tradicionais. Como a bebida oferecida foi "vinho" e não cachaça, a entidade 'baixada' no embanda seria um tatá, tendo os traços estereotipados dos atuais Pretos-velhos traçados, segundo a descrição de pais-de-santo, ou seja, 'espíritos' de Exus em transição para o escalão superior de Preto-velho. Seriam Pretos-velhos ainda portadores dos traços estereotipados dos atuais Exus da Macumba, Umbanda e Quimbanda. Este conceito de Preto-velho traçado é recente. Posterior ao influxo do Espiritismo Kardecista sobre a Macumba. Não pode, portanto, ser aplicado aos tatás da Cabula. Mas a descrição de D. Nery deixa ver sua presença já em gestação na Cabula.

Ao "vinho" vinha associada a raiz, atrás acenada. Este, porém, era o momento de sua presença litúrgica, pela mastigação e deglutição de seu suco. A mesma raiz reaparecerá mais adiante no ritual de iniciação dos camanás. Como nos rituais atuais da Macumba, também na Cabula, as oferendas não se restringiam apenas à raiz e ao copo de vinho. Era complementada com "fumo de incenso" queimado nesse momento, em um vaso qualquer, em homenagem à entidade e cuja fumaça era inalada. Também esta prática ritual da Cabula se mantém na Macumba, Umbanda e Quimbanda, só que deslocada. Na Cabula, era homenagem à entidade 'incorporada' no embanda.

Nas atuais Macumba, Umbanda e Quimbanda transformou-se a incensação em rito preliminar de purificação ritual do local e dos participantes, preparatório para a Abertura dos Trabalhos. A incensação “purifica” o ambiente e as pessoas presentes. Libera-as das "cargas negativas", que lhes estão aderentes à pele (pelo fato de andarem nas ruas) e transportadas para os terreiros ao neles entrarem. A incensação serve também para preparar a cabeça dos filhos-de-santo para “receberem” as entidades, procurando — como se fazia na Cabula — aspirar a fumaça do incenso e com ela impregnar a própria cabeça, trazendo a fumaça com as mãos para as têmporas, fronte e occipital, visando “fortalecer” a cabeça e melhor poder “incorporar” as entidades.

O SEGUNDO NIMBU

Após a aspiração do incenso, o embanda entoava o segundo cântico:
Baculo do ar
Me quisa na mesa
Me tomba a girar (Nery, 1963, p. 7)
Depois do nimbu de abertura do ritual, saudando Carunga, tatá e baculo e pedindo licença para funcionar - "quendá" – este segundo nimbu dirige-se exclusivamente ao “baculo do ar", isto é, ou ao baculo que habita a atmosfera, ou à atmosfera com seus fenômenos metereológicos. Os dados que possuímos não especificam a identidade deste "baculo do ar". Contudo, ele é chave no ritual, pois o nimbu lhe atribue o poder de fazer o embanda "quisar” na mesa" e "tombar a girar". Até o momento deste trabalho não conseguimos descobrir o significado do "quisar". A "mesa", como já vimos, corresponde ao gongá ou congá (altar) e à todo o ritual da Cabula. O poder de "tombar a girar" não oferece dificuldade: pede-lhe o embanda que atue de modo a fazê-lo entrar em estado de transe, segundo a fenomenologia ritual de "girar", rodopiar até "tombar", cair no chão, em estado de transe, como ainda hoje sucede nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda com os iniciantes no ritual, que estão aprendendo a “desenvolver a mediunidade”.

Este pedido, na lógica da sequência do ritual descrito por D. Nery, suporia que o embanda ainda não tivesse entrado em estado de transe. Mas, como vimos atrás, o embanda já havia entrado. O nimbu, portanto, deveria ser cantado: ou para obter a possessão, caso ainda não tivesse entrado em transe; ou, se já estivesse “possuído”, para manter a sequência de hinos do ritual.


O RITO DO CANDARU

A seguir, informa D. Nery, "o Embanda, ora dançando ao bater compassado das palmas, ora em êxtase [= estado de transe], recebe o Cambono o Candaru (brasa em que foi queimado o incenso), trinca nos dentes e começa a despedir chispas pela boca, entoando o Nimbu:
Me chame três candaru
Me chame três tatá
Sou embanda novo (ou velho)
Hoje venho curimá. (Nery, 1963, p. 7)
D. Nery define candaru como fogo (1963, p. 9). Com maior precisão, o candaru, referido neste nimbu, é uma palavra de origem provavelmente ioruba e não banto, correspondendo ao ase (coador) + ere (barro) = coador feito de barro, onde eram postas brasas. No ritual, o candaru era usado como prova iniciática ou de comprovação da autenticidade da “possessão” por uma entidade. A prova consistia em colocar sobre a cabeça do iniciado, de cujo transe se duvidava da autenticidade, a vasilha de barro com orifícios no fundo e dentro fogo vivo (aserê) ou brasas (candaru), sobre as quais se derramava azeite.

Se o transe fosse autêntico, a pessoa não deveria se queimar. O rito usado na Cabula o era também em terreiros sudaneses da Bahia e em outros lugares de influência banto. Aqui, no Rio de Janeiro, nas pesquisas de campo em terreiros de Umbanda e Macumba ouvi frequentemente referências a essa prática comprobatória da autenticidade da “possessão” por uma entidade, mas nos quatro anos de intensiva pesquisa de campo não tive ocasião de presenciar a sua prática. Ao que tudo indica, está caindo em desuso, pela pressão de pais-de-santo de formação kardecista, que repugnam todas as práticas virulentas dos antigos rituais africanos.

Aqui, na sequência ritual, o candaru foi entregue ao embanda, que o "trincou com os dentes, soltando chispas de fogo pela boca", como uma demonstração da autenticidade de sua “possessão”, ante à comunidade. O candaru foi usado não da forma usual, sobre a cabeça, mas trincado pela borda com os dentes, de modo a poder, com as brasas próximas da boca, provocar chispas de fogo, dando a impressão de saírem. Visava impressionar os neófitos, pois a seguir se fazia a iniciação.

Ao "curimá[r]" D Nery dá o significado de "brincar" (1963, p. 9). Precisamente, curimar significa cantar curimbas ou corimbas, cânticos religiosos negro-brasileiros, para saudar ou invocar as entidades do culto. Seria uma palavra: ou de origem ioruba, formada de "ko" (cantou) + "orin" (canção) + "ba" (realmente); ou proceder do dialeto kimbundo, formada pelo prefixo verbal "ku" + "imba" (cantar) (Cacciatore, p. 95).


INICIAÇÃO DOS NEÓFITOS

Após esse nimbu principiava a iniciação dos novos camanás. Caso houvesse algum neófito, um caialo, com o seu padrinho, durante essa fase inicial do ritual, devia ter ficado afastado do camucite.

Neste momento, o caialo, vestido humildemente com calça e camisa brancas sem goma e descalço, após penetrar no círculo, devia passar três vezes por baixo das pernas do embanda. Era a tríplice viagem, simbolizando a fé, a humildade e a total obediência ao seu novo pai, como dali em diante chamará o embanda (Nery, 1962, p. 9). É de se observar que aqui temos o mesmo tratamento que os adeptos da Macumba dão ao chefe religioso da comunidade: "pai", tanto como abreviação do termo pai-de-santo, tradução portuguesa de Babalorixá ["babá (pai) + "orixá"(santo)], quanto no sentido de paternidade espiritual do chefe.

Durante a iniciação do caialo, os camanás entoavam hinos de ação de graças às suas “entidades”, pela aquisição do novo irmão de culto. Com o caialo de pé diante de si, o embanda recebia de um dos cambonos a emba. Segundo D. Nery, um pó sagrado feito de tabatinga, espécie de argila branca, seca (1963, p. 10). Bastide, entendendo erradamento o termo "tabatinga", julgou que fosse uma árvore ou arbusto, daí concluir que emba era "um pó mágico, feito de folhas" (Bastide, 1960, p. 285). Com a emba o embanda friccionava "os pulsos, a testa e o occipital do caialo" (Nery, 1963, p. 8). Esta também é outra das identidades entre a Cabula e a Macumba, Quimbanda e Umbanda de tradições africanas. 

A emba da Cabula é a atual pemba dos terreiros, tabatinga branca ou em cores, compactada em pequenos bastões e usada para traçar pequenos sinais ou cruzes na fronte, pulsos, peito, peito-dos-pés dos filhos-de-santo. Exatamente nos mesmos locais do corpo iniciado, assinalados pelo embanda com a emba sobre os caialos na Cabula. O rito, atualmente em processo de desaparecimento, é aplicado, segundo informações colhidas entre 1968 e 1972 com os pais-de-santo, nos rituais semelhantes ao da iniciação da Cabula. Além deste uso, é aplicado em alguns terreiros, também, sobre os mesmos pontos do corpo de pessoas que estejam se debatendo “possuídas” por “obsessores” nos terreiros. Finalmente é usada no traçado dos pontos-riscados nas tábuas de pontos. Após a assinalação, era-lhes entregue a raiz para mastigar e engolir o suco e um cálice de vinho para beber. Concluía-se assim, a iniciação. Pronto o caialo, o embanda o conduzia ao lugar que daí por diante ocuparia na engira, entre os camanás. Todos os caialos atendidos era a vez dos camanás. Mastigavam a raiz, ingeriam-lhe o suco e bebiam do vinho. Novo nimbu era entoado ritmicamente acompanhado pelas palmas dos camanás.


O RITUAL DA VELA ACESA

Na sequência ritual o embanda tomava uma vela acesa, benzia-a e começava a "passá-la por entre as pernas, por baixo dos braços e pelas costas" de cada camaná. Este mesmo rito ainda hoje é praticado nos terreiros de Macumba por filhos-de-santo “incorporados”, especialmente, com Exus. O rito é usado algumas vezes associado à defumação pela fumaça do cachimbo ou charuto que a entidade esteja fumando, com a finalidade de purificar o consulente e liberá-lo das supostas “cargas negativas”, que lhe estejam aderentes ao corpo. Este é mais um dos ritos que vinculam a Macumba à Cabula.

Na Cabula, a permanência da vela acesa, não obstante os deslocamentos no ar pela mão do embanda abaixo e acima, à direita e à esquerda do corpo do camaná, revelava ao embanda a fé do camaná. O lume aceso patenteava a robustez de sua fé no culto e em suas “entidades”, por essa razão, quando se apagava a vela diante de algum camaná, gritava o embanda:

- "Por conta de quem camaná fulano não tem ca-fé, ca"tudo?" (Nery, 1963, p. 8)

O cambone respondia, mas a falta de fé era punida com duas, três ou quatro palmadas com o “quimbandon”, a palmatória, até que a vela não mais se apagasse. Os castigos eram frequentes e aplicados pelo embanda para aperfeiçoar os camanás.


A TOMADA DO SANTÉ

Comprovada a fé de todos os camanás, chegava-se ao ápice do ritual: "a tomada do Santé". Esta expressão requer análise. À uma leitura de afogadilho, crer-se-ia que o Santé fosse uma bebida, algo que se toma, bebe. Na realidade significa ser tomado, possuído, pelo Santé. No pequeno glossário anexo ao texto, D. Nery define "Santé" como "Espírito Principal". Olga Cacciatore informa que "Santés" são os "espíritos da Natureza" (p. 75), ao que se vê, conceito semelhante ou idêntico ao de "bacuro". Roger Bastide esclarece que "Santé" é a abreviatura da palavra "santidade", presente nos primórdios da colonização do Brasil e combatida pela primeira Visitação do Santo Ofício, como atestam as Confissões da Bahia de 1591 - 1592. Era um culto sincrético, de base indígena com elementos do Catolicismo popular e o uso do fumo.

O "espírito de santidade", ou "Santé" era o transe obtido pela inalação do fumo do tabaco, "a erva sagrada" (Bastide, 1960, p. 241-242; 285). O termo foi assumido pelo Culto dos Caboclos, mais ou menos cristianizado e disseminado pelo sertão nordestino, estando nas origens do Catimbó atual. Dele, provavelmente, os cabulistas tomaram a expressão para designar esta parte central do ritual. A "tomada do Santé", portanto, significa "receber o Santé", isto é, “incorporar”, ou como é dito na Macumba carioca "receber o santé” ou “o santo" O termo "santé" ainda hoje é usado nos terreiros de Macumba e mesmo de Umbanda, como ouvi expresso pelo pai-de-santo do extinto Templo Umbandista da Legião Espiritualista de Assistência Social, na rua S. Clemente n9 321 em Botafogo (RJ) durante as pesquisas de campo realizadas entre 1968 e 1972.

Informa D. Nery que a "tomada do Santé" era o "ponto principal de todas as reuniões" (1963, p. 8). O fato corresponde exatamente à finalidade central de todas as sessões de Macumba, Quimbanda e Umbanda: "receber” as entidades, para que “venham trabalhar e fazer caridade", como dizem. Nessa expectativa dobravam um lenço branco em forma de fita, cingindo com ele a testa e amarrando-o à nuca. Como D. Nery havia relatado que no início da engira todos os camanás já o haviam feito, supomos que o reiterar a referência esse momento queira se referir aos novos camanás recém-iniciados. 

Para aumentar a concentração psicológica do grupo, reduziam a intensidade luminosa da fogueira e perfumavam o ambiente queimando incenso ou rezinas aromáticas. Os dois procedimentos rituais ainda hoje são usados nos terreiros de Macumba para criar condições ambientais propícias à entrada em estado de transe e à “possessão” pelas “entidades”. Houve nessa continuidade histórica, contudo, um deslocamento: a incensação foi antecipada, realizando-se no início de todo o ritual, como cerimônia preliminar de purificação do ambiente, antes de se iniciarem as giras, mas, a redução da luminosidade continua como preparação ambiental imediata para a “descida” das “entidades”, como se fazia nas engiras da Cabula. Agora, nos terreiros, onde não se acendem fogueiras, apagam-se as lâmpadas comuns ou de luz fria e acendem-se pequenas lâmpadas azuis, para dar ao ambiente uma luminosidade difusa de luar.

Criado o condicionamento imediato para a “possessão” pelo Santé, entoava-se o cântico evocativo. Ao ritmo das palmas, informa D. Nery, dançava o embanda, "esforçando-se com grandes gestos e trejeitos, para que o Espírito se apoderasse de todos. Quase sempre há em cada Mesa mais de um Embanda e o esforço do Embanda chefe é no sentido de dar o Santé aos Embandas inferiores, para que sejam dali afastados" (Nery, 1963, p. 8]. O relato desta parte do ritual é confuso, embora coerente no início, com o que vem sendo narrado e que ainda se observa atualmente nos terreiros de Macumba. O final parece contraditório. Vejamos: 

Informa que "quase sempre há em cada Mesa mais de um embanda". Se entendermos o termo "embanda", como vem sendo usado até agora, com o sentido etimológico de sacerdote do culto banto na Cabula, a frase informa que na Cabula não havia um único embanda, mas vários, em hierarquia. Um embanda chefe e outros embandas subordinados, ou subchefes. Essa hierarquia ainda se encontra hoje nos terreiros de Umbanda, procedentes da antiga Macumba, como constatamos, entre outros, no Templo Umbandista da Legião Espiritualista de Assistência Social, acima citado; na Tenda Espirita Pai Jerônimo, rua Barão de Ubá, 423 - fundos (Praça da Bandeira); na Tenda Mirim, Av. Marechal Rondon, n9 597 (S. Francisco Xavier) (V. C. Costa, 1983, p. 313; 496-97; 22).
- Diz-nos que a preocupação e trabalho do "Embanda chefe é de dar o Santé aos embandas inferiores", portanto, ajudar, criar condições para que também os "embandas inferiores incorporem as entidades”. Até aqui, tudo lógico. Mas a subordinada final - "para que sejam dali afastados" - parece ilógica! "Dá-se o Santé aos embandas" para afastá-los do ritual? Isto não tem sentido na lógica do ritual.

"Embandas inferiores" estariam sendo usados como sinônimo de "espíritos inferiores", que devem ser afastados? Neste caso, o termo "embanda" não está sendo usado com o significado de "sacerdote" mas de "espírito", "Santé", tornando equívoco o relato. Quando nos terreiros os adeptos “recebem” suas entidades não se afastam do terreiro. Permanecem nele, “incorporados”. Como consequência, as entidades que “incorporam” não se afastam, antes, tornam-se “presentes”, por meio da “incorporação”. Assim, não se entende como possam "ser afastados", sejam os "embandas inferiores", seja o "Santé". Cremos que o impasse esteja no uso equívoco do termo embanda. Parece-nos que para o trecho ter lógica é necessário manter o termo "Santé" como designando o "espírito principal", que pode ser dado a todos os "embandas inferiores". Desse modo, o "espirito principal", o Santé, por sua força preternatural afastaria os "espíritos inferiores", perniciosos e prejudiciais, presentes no ar, no local do ritual. Esses "espíritos inferiores", prejudiciais, razão pela qual devem ser "afastados" — corresponderiam ao que hoje nos terreiros de Macumba se designa como quiumbas e obsessores. Cremos ser esse o sentido do texto, pois, no parágrafo seguinte, informa D. Nery que "de espaço a espaço todos [atiravam] emba para o ar, a fim de que se afastem os maus espíritos". (Nery, 1963, p. 8-9)

Esse gesto ritual — "atirar emba para o ar" — não teve continuidade na Macumba e muito menos, na Umbanda atual. Permanece característico da Cabula, por ter sido a emba — hoje, pemba — compactada em bastonetes para seu atual uso. Na forma arcaica de uso, como pó, é possível e tem sentido, "atirá-lo para o ar", pois, as partículas do pó sagrado, espalhando-se na atmosfera, entravam em contato com os "maus espíritos", que nele se encontrassem afastando-os pela incompatibilidade mágico-religiosa da natureza sagrado-benéfica da emba oposta à maléfica dos maus espíritos.

Além desta finalidade, o rito tinha também uma segunda: "cegar os profanos" para que não vissem ou devassassem os sagrados mistérios. As partículas da emba no ar atingiriam os olhos dos profanos curiosos.


A POSSESSÃO PELO SANTÉ

"De repente um deles, geralmente o embanda, verga o corpo, pende a cabeça e rola pelo chão, em contorções. A fisionomia torna-se contraída, todo o corpo como que petrificado e sons estertorados lhe escapam do peito. É o Santé que dele se apoderou". (Nery, 1963, p. 9)

Esta descrição corresponde ao estado de transe "selvagem" nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda, no qual o iniciado ainda não aprendeu a 'receber' a entidade, permanecendo de pé, sem rolar pelo chão. Pode também ser a fenomenologia da assim dita “incorporação” de Exus e obsessores na Macumba, Umbanda e Quimbanda. Esse modo violento e doloroso, para os que são objeto deste tipo de transe, no dizer dos pais-de-santo dos terreiros, pode ser sinal da “presença” ou de um obsessor ou a forma "punitiva", com que uma entidade “castiga” um filho-de-santo, que fez algo que lhe proibira, ou por ter infringido algum interdito cúltico. Como "punição" por “entidade superior” a fenomenologia é rara. As convulsões, contorções, jogar-se ao chão, esfolando-se no pavimento, na explicação dos pais-de-santo dos terreiros, são características do modo de se “apresentar” dos obsessores. Como é perceptível, essa tipologia comportamental corresponde, na verdade, a um estado psíquico conflitual violento, que tolhe ao adepto todo o autocontrole.


A POSSESSÃO DOS CAMANÁS PELOS SANTÉ

“Receber” o Santé não era privilégio exclusivo dos embandas-chefes e subalterno. Também os simples iniciados, os camanás, o podiam e, de fato, o “recebiam”. Quando isto sucedia, os camanás “possuídos” pelo Santé, se transformavam psico-comportalmente. Informava D. Nery: "nesse período [o camaná] fala e discorre, sem ter aprendido, sobre as cousas cabulares, como o mais perfeito e sabido dos embandas" (Nery, 1961, p. 9). O camaná que “recebesse” o Santé se destacava de pronto dentre os demais e ascendia rapidamente ao status de embanda.

Do visto, ser “possuído” pelo Santé oferecia vantagens. A promoção no culto não era a maior decorrência de algo ainda mais precioso e buscado tenazmente pelos que se iniciavam no culto: a aquisição de um “espírito” que os “guiasse”' e “protegesse” em todas as necessidades duríssimas de suas vidas de escravos ou ex-escravos. Ter um “espírito-guia” era ter um "protetor" precioso. Esse "guia" e "protetor" buscado era “encontrado” por meio do Santé, do estado de transe. Daí todos trabalharem e se esforçarem por entrar em transe — ter o Santé — sujeitando-se, para isso, no dizer de D. Nery, a "diversas abstinências" e "ridículas penitências" (963, p. 9). Aqueles que conseguiam "ser tomados pelo Santé" buscavam imediatamente "obter o seu espírito familiar protetor, mediante a cerimônia ritual de embrenhar-se no mato com uma vela apagada e retornar com ela acesa, não tendo levado consigo meio algum para acendê-la — o que implica o conhecimento do modo de obter fogo por meio de atrito de madeiras ou de chispas de pedras — Com a vela acesa o camaná devia trazer o nome do seu "espírito protetor" sendo os mais comuns: Tatá Guerreiro, Tatá Flor da Carunga, Tatá Rompe Serra, Tatá Rompe Ponte, etc.

A busca cabulística de um "guia" e "protetor" para as dificuldades da vida diária se repete na agonizante Macumba e nas suas continuadoras, a Umbanda e a Quimbanda, decorrentes de sua cisão. Também no que atine aos nomes desses "espíritos protetores" há uma relativa continuidade entre a Cabula e a Macumba, Umbanda e Quimbanda. Muitos deles, com variações de significado e aplicação, ainda são perceptíveis nos atuais terreiros:

- O termo "tata", como já vimos, desapareceu como prenome de entidade, adotando novos significados.

- "Carunga", hoje dito caiunga [calunga], não é mais cultuado, como entidade protetora pessoal. Permanece como arcaico nome banto do oceano: a caiunga-grande. Como força preternatural, objeto de culto, foi substituído no Brasil, por lemanjá, conceito ioruba, que no Brasil, passou a ser a orixá do mar.

- Os designativos acoplados ao verbo "romper" – significando "força preternatural": "rompe serra", "rompe mato", "rompe ponte"... — ao lado da formação de novos nomes de significado similar — ainda continuam a existir nos terreiros atuais, mas aplicados a Caboclos (pseuda alma de índios) tais como: Caboclo Rompe Serra, Caboclo Rompe Mato etc.

Com essas informações encerra D. Nery o seu relato sobre o ritual. Não tendo a preocupação etnológica, mas apenas o "zelo pastoral" de "tomar algumas notas [oferecidas] à consideração e ao estudo dos curiosos" (Nery, 1963, p. 5) não descreve a conclusão do ritual. Esta lacuna final não desmerece a importância do relato. Ainda hoje é o que de mais importante temos sobre a Cabula.


CONCLUSÃO

O estudo da Cabula apresentado por D. Nery deu-nos acesso às raízes das arcaicas formas de expressão religiosa banto no Brasil. O relato, como vimos, ajuda-nos a entender a origem de muitas das formas de expressão do culto de Macumba, que se transmitiram à Quimbanda e à Umbanda atuais, no que ainda conservam de suas raízes africanas. Detectamos essas raízes nas identidades que procuramos levantar ao longo do trabalho, iniciando-se com o termo cafioto, usado nos primórdios da Macumba rural, passando pelas mesmas litúrgicas calças e camisas brancas pés descalços e lenço em fita amarrado à testa. Na Cabula, como na Macumba, o sacerdote do culto denominado embanda ou Umbanda, recebendo o mesmo tratamento de "pai" pelos caialos e camanás da Cabula como os atuais pais-de-santo dos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda o recebem de seus filhos-de-santo. A mesma hierarquia do embanda chefe e embandas subordinados da Cabula continuada na Macumba e Umbanda entre os pais-de-santo e os subchefes dos terreiros. Os embandas, como os atuais pais-de-santo, acolitados por cambonos com idênticas funções nos dois cultos.

A sucessão de identidades continuou nos objetos rituais: cachimbos, velas, signos cabalísticos — hoje pontos-riscados compostos de cruzes, meias-luas, estrelas de cinco e seis pontas, flechas, raios, etc. O quase idêntico uso da emba, a autal pemba, nos dois cultos. O mesmo termo "engiara" ou hoje "gira", para designar o ritual movimentado em círculos dos adeptos da Cabula, como da Macumba primitiva. O ritual cabulístico realizado em casas e nas florestas, repetindo-se nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda, com a primeira parte nos terreiros e a conclusão das giras festivas nas matas. O termo "mesa”, designativo das reuniões dos cabulístas, ainda usual em 1939 na Macumba carioca.

A repetição — ajustada às lâmpadas elétricas dos atuais terreiros — da prática cabulística de reduzir a luminosidade da fogueira que iluminava o camucite, para favorecer a concentração psicológica dos adeptos e entrarem em estado de transe. A continuação da oração preparatória inicial do culto na atual oração de abertura dos trabalhos. A estrutura musical do culto pontilhado de nimbus ritmados pelas quatan ou liquaquá, as palmas que se repetem nos atuais pontos-cantados ao ritmo de atabaques e palmas. A permanência do nome de Carunga, o oceano, na atual designação da caiunga-grande, embora tendo cessado na Macumba o culto a ele. O termo Santé vez por outra ainda usado nos terreiros com idêntico significado de ser “possuído” por uma entidade ao entrarem em estado de transe. A “possessão” pelo Santé não privilegiando apenas o embanda chefe e os embandas subalternos mas acessível também aos camanás a repetir-se na Macumba, onde não apenas o pai ou mãe-de-santo “recebem” as entidades, mas igualmente os filhos-de-santo.

As identidades prosseguiram na mesma busca de um “guia” pessoal na Cabula como na Macumba. Os nomes dos “guias” mantidos relativamente, como “Tatá”', hoje com acentuação paroxítona e significado mais amplo. O mesmo tipo de homenagens às entidades “baixadas”, como o "vinho", para os antigos tatá e os atuais Pretos-velhos, acompanhado do mesmo uso do incenso, embora com deslocamento na sequência ritual. O rito da vela acesa, passada ao redor do corpo do camaná continuado nos terreiros de Macumba, Umbanda e Quimbanda em torno do corpo dos consulentes atuais. Por último e ainda que em processo de esquecimento, o uso cabulístico da prova do candaru para autentificar a “possessão” por uma entidade.

Este acúmulo de identidades, a nosso ver, não só revelam a origem banto comum dos dois cultos, como sugerem uma continuidade histórica, intermediada por um período de encasulamento e metamorfose da Cabula na atual Macumba, esta, ressurgida algumas décadas após, a princípio, na área rural e, em seguida, inserida no contexto da periferia urbana da cidade do Rio de Janeiro, com extensão para São Paulo e Espírito Santo, na Umbanda.


BIBLIOGRAFIA
BARROS, Jacy Rego. Senza e Macumba. Rio de Janeiro: Rodrigues e Cia, 1939.
BASTIDE, R. Les Religions Africaines au Bresil. Paris: Presses Univers. de France, 1971
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Ed. Forense universitária/SEEC, 1977.
CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1980.
CARNEIRO, Édison. Negros Bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.
COSTA. Valdeli C. da. Umbanda - Os “Seres Superiores” e os Orixás/Santos. São Paulo: Ed. Loyola, 1983.
NERY, D. João B. Corrêa. "Um Culto Afro-brasileiro" em Cadernos de Etnografia e Folclore, Comissão Espírito-santense de Folclore, Vitória, 1961.
_____ "Lembranças da Visita Pastoral" [Caderno manuscrito], em Cadernos de Etnografia e Folclore (3), Comissão Espírito-santense de Folclore, Vitória , 1963.
RAMOS, Arthur. O negro Brasileiro. São Paulo: Editora Nacional, 1951.
RODRIGUES, R. Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1932.


[1] O autor deste artigo utiliza a palavra “rizoma” no sentido em que os filósofos pós-modernistas Gilles Deleuze e Felix Guattari dão a ela, no qual o rizoma seria algo que surge de algum “acidente” impossível de ser descrito, mas que de alguma forma irrompem e alteram o fluxo histórico, articulando novas ideias e pensamentos.
[2] Note-se que Jacy Rego Barros chama o Sacerdote da Cabula de Umbanda e não de Embanda, como o faz D. Nery, entre outros. É necessário que se destaque isso, pois esse nome se tornará o nome de uma religião no Século XX.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Umbanda: uma Religião Sincrética

UMBANDA, UMA RELIGIÃO SINCRÉTICA


COSTA, Hulda Silva Cedro da. Umbanda, uma religião sincrética brasileira. Tese de doutorado (Ciências da Religião). Goiânia: PUG/GO, 2013, Cap. 3, pp. 109-131.



Nesse terceiro capítulo iremos demonstrar que a Umbanda é uma religião sincrética e de raízes difusas. E que o seu sincretismo não teve início em 1908, data de sua “instauração”, mas remonta ao século XVII, com o advento da primeira religião afro-luso-brasileira denominada Calundu, religião esta que representa a primeira fase do processo embrionário de formação das religiões sincréticas afro-brasileiras.

Este processo apresenta uma segunda fase, no século XIX, com o surgimento da religião afro-brasileira de caráter revolucionário, também de origem sincrética chamada Cabula. Posteriormente, surge uma terceira fase, através da religião afro-brasileira, denominada Macumba, existente na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A partir da Macumba se dá o surgimento da religião Umbanda, que constitui a quarta fase do processo supracitado. 

Nesse sentido, analisaremos o processo de afastamento de suas matrizes africanas com a intensificação da política de embranquecimento decorrente de sua aproximação como modelo norte americano e europeu, considerado moderno e progressista. A religião Umbanda, conforme também iremos demonstrar, teve suas bases estruturais formadas em estreita consonância com as transformações sociais, políticas, étnicas, econômicas e religiosas vivenciadas no Brasil República no decorrer do século XX.


1 A UMBANDA COMO RESULTADO DE UM SINCRETISMO CONTÍNUO

Os elementos sincréticos existentes nas bases estruturais da formação da religião Umbanda, não surgiram com o seu nascedouro, no início do século XX, mas, remontam ao século XVII, como herança direta dos Calundus bantos, que foram os responsáveis pela formação embrionária de um sincretismo religioso que se formou a partir do encontro de elementos bantos, com alguns elementos católicos e outros indígenas. A formação da religião afro-luso-brasileira, denominada Calundu, constituiu a primeira fase de um processo religioso sincrético, que perdurou do século XVII até ao final do século XVIII. O Calundu, conforme já foi mencionado anteriormente, no final do século XVII, deu origem a mais dois segmentos religiosos, também sincréticos, quais sejam, o Catimbó e a Pajelança (BASTIDE, 1985).

Estes primeiros movimentos sincréticos recém-formados, durante o século XVII, no período do Brasil colonial, surgiram em decorrência dos inúmeros conflitos sociais e religiosos existentes entre os colonizadores e os escravos. Neste contexto, o sincretismo serviu como um instrumento de mediação face às diferenças culturais e religiosas advindas, do encontro ocorrido entre os portugueses, os africanos e os afrodescendentes (VALENTE, 1976).

Na primeira metade do século XIX, deu-se o início de uma outra religião, também, de origem banto, denominada Cabula, de caráter altamente revolucionário, herdeira do sincretismo dos calundus, que se constituiu como a segunda fase do processo sincrético já mencionado. Nesse primeiro momento, a Cabula se caracterizava como um processo de resistência negra campesina. Os senhores colonizadores perceberam que as crenças dos negros estavam se tornando uma ameaça à soberania exercida por eles. Portanto, as suas religiões passaram a ser vistas, por extensão, pelos senhores de escravos, como um mecanismo de resistência ideológica social e cultural frente ao sistema de dominação existente (MOURA, 1988).

A partir do final da quarta metade do século XIX, a Cabula agregou alguns elementos do Espiritismo Kardecista aos seus rituais, para que pudesse fugir das perseguições empreendidas pela Igreja e pelo Estado. Buscava dessa maneira uma forma alternativa de se escamotear ao lado de um segmento religioso que era aceito pela classe dominante vigente. Isso para Rehbein (1985) configura resistência cultural, e é concomitantemente uma forma de preservar as raízes africanas. A partir daí se consolida um sincretismo contínuo e dinâmico, que se adaptará, de acordo com as transformações sociais face às cargas políticas e circunstanciais onde terá que se revestir ou se metamorfosear (SANCHIS, 1994).

No final do século XIX e início do século XX, a Cabula irá se fundir com a religião denominada Macumba, que agregará vários elementos religiosos em seu culto, e se constituirá na terceira fase deste processo sincrético contínuo. Dessa forma, o sincretismo na Macumba irá apresentar várias facetas, tendo em vista a existência de zonas interétnicas, decorrentes dos contatos entre diferentes culturas, religiões e línguas, onde as fronteiras se tornam porosas ou se diluem, propiciando um espaço ambivalente de poderes e privilégios, um trânsito imperceptível no limiar entre o caos e a ordem social (CASTRO, 2007).

A Macumba, conforme Edison Carneiro (2008) será a precursora da religião Umbanda, e esta herdará um arcabouço simbólico trazido das fases predecessoras, advindas de um sincretismo religioso contínuo que antecedeu à sua própria formação. Neste contexto, a Umbanda desconstrói partes do universo simbólico da Macumba, ressignificando os seus elementos, alicerçando-se sobre as suas ruínas simbólicas e ocupando os seus espaços religiosos. As desconstruções e reconstruções efetuadas irão se transformar em novas práticas e em novos significados (STEWART, 1994).

A Umbanda na busca de sua estruturação utiliza um processo sincrético para que possa legitimar-se enquanto religião socialmente aceita, de acordo com os conceitos de modernidade, inseridos num contexto histórico de grandes transformações sociais, econômicas e políticas. Seus agentes irão se aproximar da classe dominante através de táticas e astúcias, e irão se infiltrar por meio de um processo microbiano procurando subverter as estratégias do sistema vigente (CERTEAU, 2011). 

A Umbanda ao aproximar-se do Espiritismo Kardecista buscou maquiar-se para que pudesse ser aceita pela classe média branca, e também, pelas autoridades governamentais. Ao mesmo tempo buscou se precaver dos ostensivos ataques policiais efetuados junto aos seus terreiros. O próprio chefe de polícia política[1] do Governo Vargas, no período compreendido entre os anos de 1930 a 1945, Felinto Müller, afirmava que o Espiritismo Kardecista era uma religião inofensiva para o sistema de governo. Nesse sentido, os centros espíritas kardecistas se encontravam protegidos pelas próprias autoridades policiais. A Umbanda percebendo essa aceitação por parte do Estado em relação ao espiritismo, se rotulou como uma religião denominada Espiritismo de Umbanda. Isso se perfez por meio de um sincretismo intencional, onde a Umbanda buscava dessa forma, se proteger e fugir dos estereótipos que lhe eram atribuídos que redundavam nas inúmeras perseguições policiais. (OLIVEIRA, 2008).

O distanciamento estratégico da Umbanda das matrizes africanas foi em detrimento destas serem consideradas portadoras de práticas bizarras, atrasadas, estranhas e repugnantes, do ponto de vista europeizado e positivista. Para Bauman (1999) tudo que é estranho, repugnante ou repulsivo, é incompatível com a modernidade. Portanto, tais práticas foram consideradas anômalas, e em oposição às propostas de uma nova religião que queria fugir dos estigmas de selvagerias, feitiçarias e ambiguidades que eram atribuídas à Macumba. Dessa forma, a Umbanda buscou se eximir das ambivalências que se encontravam no limiar existente entre o caos e a ordem (BAUMAM, 1999).

A partir de 1925, a Umbanda aproximou-se mais dos elementos indígenas, autóctones, para que estes pudessem lhe conferir um caráter de nacionalismo ou brasilidade, de acordo com os preceitos e ditames da ideologia dominante deste período. Dessa forma, a Umbanda projetou-se no cenário religioso da era Vargas como um mosaico religioso que irá refletir o modelo de uma religião brasileira que será compatível com os moldes das religiões protestantes, oriundas da Europa e dos Estados Unidos, e com o Espiritismo Kardecista, todos considerados modernos e racionalistas, e que contrapunham-se à religiosidade popular existente no Brasil.

Religiosidade esta combatida duramente, desde 1840, pelo processo de romanização empreendido pela igreja católica brasileira que tinha como objetivo livrar-se dos elementos sincréticos existentes no catolicismo popular (SERBIN, 2008). 

A Umbanda tentou se espelhar em determinados aspectos dessas religiões supracitadas, buscando legitimar-se como uma religião nacional. Ela buscou aproximar-se e conquistar as classes emergentes, quais sejam, a classe operária e os profissionais liberais, pertencentes à classe média branca, que abraçavam os ideais e levantavam a bandeira de modernização, corporativismo, ordem e progresso (OLIVEIRA, 2008). Nesse sentido, a Umbanda tenta negar suas origens, que reportam aos negros escravizados que praticavam heresias, sob o ponto de vista da classe dominante.

A legitimação é sensível no que diz respeito ao mercado religioso onde a Umbanda, considerada num passado recente como heresia, torna-se, pouco a pouco, um sistema religioso aceito pelas outras profissões de fé. A partir de um ramo da macumba, prática negra e ilegítima, assiste-se à emergência e ao reconhecimento social de uma nova religião que se desenvolve hoje através de toda a nação brasileira (ORTIZ, 1999, p.15).

Dessa forma, se estabelece um divisor de águas, ou dois polos, onde de um lado, estavam as religiões que representavam a África, e de outro, a que representava o Brasil, qual seja, a Umbanda. Nesse momento, a Umbanda intitulou-se como uma religião nacional, denominando-se uma religião afro-brasileira moderna, difundindo suas práticas religiosas, e tentando conquistar o mercado religioso, dentro de um espaço heterogêneo da recém-formada sociedade urbana brasileira.


2 O PROCESSO DE EMBRANQUECIMENTO DA UMBANDA

O processo de embranquecimento da religião Umbanda teve início desde a sua fundação em 1908, com Zélio de Moraes, pois tanto ele quanto seus companheiros umbandistas, provenientes da classe média da sociedade brasileira, além de serem praticamente quase todos de etnia branca, procuraram abolir, da nova religião que se formava, os elementos das religiões afro-brasileiras que eram considerados como baixo espiritismo. Diana Brown (1985) afirma que “dos 17 homens retratados numa fotografia oficial dos fundadores e principais líderes da Umbanda, tirada em 1941, meus informantes identificaram 15 como brancos e apenas dois como mulatos. Nenhum era negro” (BROWN, 1985, p. 11).

A religião Umbanda ao buscar a sua legitimação social o faz em conformidade com os valores ditados pela sociedade brasileira, que vivia um processo de rejeição às práticas religiosas afro-brasileiras que eram consideradas atrasadas, avessas à ideologia do modelo político que permeava a classe dominante. Portanto, para que pudesse ter o seu reconhecimento, enquanto religião aceita socialmente, era preciso se livrar daquilo que lembrasse a magia negra praticada na Macumba pelos negros africanos, tidos como miseráveis, proletários e seres inferiores. Para Bastide (1985, p. 439),
a ideia do negro bêbado, da negra ladra, da prostituição de cor, do negro ignorante e grosseiro, preguiçoso ou mentiroso. Como então aceitar que semelhante gente, depois da morte, se transforme em espíritos de luz, capazes de guiar no caminho do Bem não somente os irmãos de raça (o que, a rigor, seria compreensível) mas também os brancos!
O processo de embranquecimento ganhou novo impulso em 1924, com a criação da Tenda Espírita Mirim, dirigida por Benjamin Gonçalves Figueiredo, discípulo de Zélio de Moraes, que da mesma forma que seu antecessor, se afastou mais ainda das matrizes africanas, aproximando-se mais das raízes indígenas, e com mais intensidade dos elementos do Espiritismo Kardecista. A partir de 1930, com o advento da política de Getúlio Vargas de modernização, urbanização e industrialização do Brasil, a Umbanda segue lado a lado com o Espiritismo Kardecista que era aceito pelos intelectuais da classe média branca. Segundo Roger Bastide (1985) o sucesso do Espiritismo foi imediato desde que surgiu no Brasil, por volta de 1863. Percebemos, que isso se deu primeiro, por ter sido da Europa, de uma classe branca, letrada e elitizada, segundo, por seus ensinamentos e doutrinas serem de cunho científico, intelectualizados, racionalizados e estruturados ritual e doutrinariamente.

Em 1941, com a realização do Primeiro Congresso Espírita de Umbanda houve a tentativa de provar definitivamente que a Umbanda não era oriunda dos povos africanos. Alguns umbandistas atribuíram a origem da Umbanda aos índios da América do Sul, e estes seriam oriundos do continente perdido de Atlântica. Outros umbandistas atribuíram a outro continente mítico conhecido como Lemúria, outros à Índia, e outros à África, mas à África do norte, ao Egito (CUMINO, 2011).

Os congressos espíritas de Umbanda ocorridos em 1961 e 1973 reforçaram esse processo de embranquecimento, pois, no caso da religião Umbanda o branqueamento seria o afastamento de elementos atrasados, oriundos da Macumba, consequentemente de elementos de matrizes africanas. Os idealizadores da Umbanda procuraram estar conforme os valores ditados pelo projeto político da elite dominante que buscava branquear a população e erradicar a presença negra, tida como empecilho para que se pudesse alcançar patamares de desenvolvimento de acordo com os padrões ocidentais, pois, ser branco era sinônimo de progresso. Portanto, “conforme essa maneira de ver as coisas, para o Brasil atingir o mesmo nível das nações mais desenvolvidas deveria eliminar seu lado africano e negro” (SOUZA, 2007, p. 122).

A Umbanda sacraliza esses valores estabelecidos por essa classe dominante, procedendo ao mesmo jogo desses opressores, ela procurava estar de acordo com a moral, as crenças, os valores e os bons costumes dominantes estabelecidos (LAPASSADE e LUZ,1972), tendo em vista que “o autoritarismo e a prepotência, estavam sendo construídos com os mesmos tijolos culturais já moldados” (FRY, 1982, p.14).

Houve muitas dissidências e surgimentos de outros segmentos umbandistas[2], durante a trajetória da religião umbanda, desde o seu início, com o advento de outros segmentos religiosos que não aceitaram o embranquecimento das matrizes africanas. Dentre estas dissidências, apenas a título de exemplo, podemos citar o surgimento de um ramo da Macumba, que permaneceu escondido, denominado de Quimbanda pelos próprios adeptos da Umbanda. Também outro dissidente foi o umbandista Tancredo da Silva Pinto, conhecido como Táta Tancredo e o surgimento das Linhas Cruzadas[3], no início dos anos sessenta no Rio Grande do Sul.

As discussões acerca da utilização ou não dos elementos pertencentes às matrizes africanas perdura até os dias atuais. E quando são utilizados estes elementos, percebe-se que eles o são de forma ressignificada. O processo de embranquecimento da Umbanda foi mais intenso a partir das décadas de 1920 e 1930, pois, havia a necessidade de se atrelar cada vez mais ao Espiritismo Kardecista depurando de seus rituais e de sua doutrina elementos que fossem de encontro ao modelo ideológico e político estabelecido no Brasil.


3 O PAPEL DO SINCRETISMO NO PROCESSO DO EMBRANQUECIMENTO DA UMBANDA

A Umbanda, instaurada em 1908, é o resultado da quarta fase[4] de um processo sincrético contínuo que foi ao longo do tempo adaptado e utilizado de acordo com os movimentos das transformações socioculturais ocorridas. Este processo contínuo de sincretismo foi revisto e redefinido pelos idealizadores umbandistas, liderados por Zélio Fernandino de Morais e um grupo de intelectuais da classe média branca, no Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941, na cidade do Rio de Janeiro. Neste congresso, o papel do sincretismo objetiva legitimar a Umbanda como uma religião moderna e compatível com os valores vigentes, buscando, também ser aceita pela classe média branca e pelas classes operárias miscigenadas emergentes. 

A Umbanda nasceu dentro de um processo de branqueamento, que teve início no final do século XIX, na passagem do Império à República, onde a premissa era livrar-se dos estigmas do escravismo, e da presença dos negros, ainda, de tudo àquilo que estivesse relacionado a eles, pois, eram estereotipados como uma classe marginal. Nessa passagem de sociedade escravista para sociedade livre estabeleceu-se um modelo social, trazendo novas lógicas que explicavam e definiam o papel dos grupos sociais, inserindo-os como de caráter central ou marginal. Portanto, no processo de branqueamento, que se iniciou no final do século XIX, com fim do Império, e se manteve na República, “o que estava em jogo era não apenas a construção de um novo regime político, como a conservação de uma hierarquia social arraigada que opunha elites de propriedades rurais a uma grande massa de escravos e uma diminuta classe média urbana” (SCHWARCZ, 1993, p. 27). 

No Brasil República fomentava-se ideias de construções de modelos e de conceitos importados da Europa, que eram tidos como modernos, civilizados e evoluídos. Nesse sentido, o advento das imigrações de alemães, italianos e poloneses para o Brasil tinha a intenção de fomentar um processo de branqueamento intencional, visando mudar sistematicamente os aspectos fenótipos[5] da população brasileira para conferir uma nova fisionomia ao Brasil, ou seja, uma cara que fosse compatível e de acordo com os padrões aceitáveis dentro dos preceitos capitalistas. Com isso, objetiva-se forçar a atenção e angariar possíveis parcerias com os países desenvolvidos, especialmente, a Europa e os Estados Unidos. Cabe ressaltar, que a população brasileira, no início do século XX, era em sua grande maioria composta por negros, mulatos e pardos. Nesse contexto, a Umbanda surge com o objetivo de atender aos modelos impostos pelas políticas governamentais, pela elite branca e pela própria população afrodescendente, que também, ansiava criar uma nova fisionomia, que fosse oposta a trazida pelos estigmas da escravidão (CUMINO, 2011). 

Em 1941, ocorre definitivamente à intenção de utilizar o sincretismo de forma intencional para que se pudesse legitimar o processo de branqueamento da Umbanda que já havia tido início desde o seu nascedouro em 1908. Os congressistas umbandistas deste Primeiro Congresso de Umbanda tentaram provar com as teses apresentadas, que a umbanda não foi trazida da África através dos negros degredados para o Brasil Colonial. Uma corrente de umbandistas defende a tese de que ela é depositária da mítica AUM-BAN-DAN oriunda das lendárias Atlântida e Lemúria, mas, que é transmitida aos povos da África posteriormente (FERNANDES, 1942; OLIVEIRA, 1996). 

Rivas Neto (2007) afirma que a Umbanda vem dos povos indígenas, ou seja, habitantes da terra denominada de Baratizil[6], hoje denominada América do Sul. 

Para Cumino (2011) a teoria negando as origens africanas da Umbanda, foi defendida por Woodrow Wilson Matta e Silva, no congresso de 1941. 

Diamantino Coelho Fernandes (1942) neste mesmo congresso, ressalta que a origem Umbanda vem do sânscrito, portanto, da Índia. 

Percebemos, que esses argumentos caracterizam um processo de negação das origens africanas da Umbanda, não atribuindo aos negros que vieram da África para o Brasil como escravos a sua origem, pois, afastam qualquer possibilidade de vincular sua remanescência ao continente africano. Este processo de negação da cultura negra estava em estreita consonância com os valores ditados pela política implantada por Getúlio Vargas (LANDES,1967), que buscava diminuir a presença da etnia

Diana Brown (1985) discorre acerca da Umbanda, e enfatiza o processo de branqueamento que se deu desde a sua formação, tendo em vista os próprios fundadores[7], a começar por seu idealizador, Zélio de Morais, serem todos eles, em maioria absoluta, de cor branca, pois, perfaziam um total de 15 brancos, dois mulatos e nenhum negro, e todos eles eram intelectuais. Percebemos, que esta tentativa de fugir dos estigmas e dos estereótipos atribuídos aos escravos negros africanos e seus afrodescendentes, era parte de uma estratégia política, iniciada com o advento da proclamação da República, em 1889, que visava aproximar-se sistematicamente dos países desenvolvidos. Portanto, era preciso se desvencilhar de tudo que fosse atrasado, do ponto de vista desses países desenvolvidos.

Por outro lado, Brown (1985) traz uma teoria paradoxal acerca do surgimento da Umbanda, no que se refere aos seus fundadores. Ela apresenta um processo inverso desenvolvido por eles, segundo o qual eles seriam espíritas kardecistas descontentes, que procuraram se apropriar de alguns elementos da Macumba, desde que esses não fossem de encontro aos valores vigentes na sociedade brasileira. Nesse sentido, dois elementos extraídos da Macumba passaram a ser elementos centrais da Umbanda, quais sejam, os caboclos e os pretos velhos. 

Esses elementos representavam o resultado de um longo processo de dominação, o índio sob o codinome caboclo, caracterizava o mestiço ou o selvagem adestrado, e o preto velho, caracterizava o negro ladino[8] aculturado, submisso aos seus senhores brancos. Portanto, “não seria possível abrir mão de alguns aspectos cerimonias, ritualísticos e do próprio panteão da Macumba. A negação desses elementos poderia gerar um risco de perda da identidade religiosa” (SÁ JUNIOR, 2012, p. 8).

Dessa forma, o embranquecimento pretendido, traria possíveis riscos, tendo em vista o afastamento demasiado do universo das matrizes africanas, e de outros elementos sincréticos pertencentes ao mundo da Macumba. 

Os fundadores da Umbanda, paradoxalmente, se apropriaram de determinados elementos afros, porém, rejeitaram outros, que ideologicamente caracterizavam resistência aos ditames da classe branca dominante. A Umbanda fugiu totalmente de alguns elementos afros, porque tinha que conquistar um público determinado, qual seja, as massas subalternas que pertenciam ao mundo das feitiçarias do universo da Macumba. 

Percebemos, que no Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941, os congressistas presentes buscavam legitimar a Umbanda como uma religião genuinamente brasileira. As discussões entabuladas giravam em torno de dois temas principais:
a preocupação com a criação de uma Umbanda desafricanizada, cujas origens foram localizadas nas antigas tradições religiosas do Extremo Oriente e do Oriente Próximo, e o esforço para branquear ou purificar a Umbanda, desassociando-a da África primitiva e bárbara (BROWN, 1985, p.11).
Os fundadores da Umbanda, paradoxalmente, se apropriaram de determinados elementos afros, porém, rejeitaram outros, que ideologicamente caracterizavam resistência aos ditames da classe branca dominante. A Umbanda fugiu totalmente de alguns elementos afros, porque tinha que conquistar um público determinado, qual seja, as massas subalternas que pertenciam ao mundo das feitiçarias do universo da Macumba.

A fundação da Umbanda estava ligada diretamente às relações de classes urbanas que se encontravam sob um processo de intensa mudança. Ela externava o reconhecimento, em torno dos setores médios, pelo crescimento das massas, com a intenção de modelar e ditar paradigmas e controlar suas principais atividades (BROWN, 1985). Os intelectuais fundadores da Umbanda planejaram racionalmente um sincretismo intencional ao escolherem alguns símbolos nacionalistas, representados pelos espíritos principais da liturgia umbandista, como exemplo, Ogum negro sincretizado com São Jorge branco, ou seja, um orixá negro guerreiro torna-se branqueado, passando a ser representado por um santo militar católico, com status de General, e branco. Coincidentemente, o Presidente da República, Getúlio Vargas, era militar e ocupava o posto de General. Outro orixá, denominado Xangô, foi sincretizado com São Jerônimo, e tanto o orixá quanto o santo, ambos representavam símbolos da justiça. Percebe-se assim uma clara alusão à máxima, Ordem e Progresso.

Pessoa (1960, p. 89) expressa esse nacionalismo umbandista, ao afirmar que, “a Umbanda é hoje uma religião nacional, bem nossa, bem brasileira”. Nesse sentido, percebe-se que os umbandistas foram influenciados pelo nacionalismo de Vargas, que consistia numa política de valorização dos produtos internos, mas, que não dispensava o auxílio externo, ou seja, o produto externo. A política do governo Vargas buscava despertar uma consciência nacional[9], através da construção de uma identidade única, que fosse de acordo com os princípios de nacionalidade. Portanto, Vargas tinha como objetivo criar uma cultura nacional única, consolidando a unificação social e cultural do povo brasileiro (BROW, 1985). O nacionalismo desse governo visava a centralização do poder, por isso, a unificação se fazia pertinente. Nesse sentido, “não importa quão diferente seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural para representá-los todos como pertencendo a uma mesma e grande família” (HALL, 2011, p. 59-60). Neste contexto, do período do governo Vargas, a Umbanda sentia a necessidade de fazer parte dessa grande família brasileira, e principalmente, de ser uma religião nacional.

A Umbanda durante a segunda guerra mundial teve um significativo crescimento devido à ansiedade gerada pelos conflitos criados pelo Estado Novo[10], e pelos efeitos colaterais resultantes da segunda guerra mundial que “estimularam muitos indivíduos a buscar conforto e consolo na Umbanda e em outros espiritismos” (PESSOA apud BROWN, 1985, p. 17). Nesse caso, a Umbanda atrelada ao sistema de governo e utilizando o Espiritismo Kardecista, ao se colocar como um segmento espírita em pé de igualdade com ele, busca se legitimar como uma religião aceita e necessária naquele contexto histórico.

No que tange ao processo de branqueamento contínuo, a Umbanda consegue branquear basicamente quase todos os orixás negros oriundos dos cultos africanos trazidos da África, pelos escravos (PRANDI, 2001). Por exemplo, Oxalá, sincretizado com Jesus Cristo e Iemanjá com Nossa Senhora dos Navegantes, onde esta expressa, por meio de uma iconografia estilizada e ressignificada, o resultado de um processo de branqueamento. A sensualidade de Iemanjá foi minimizada por longas vestes, sua pele tornou-se branca e suas feições europeias, elementos estes que não caracterizavam ameaças ao regime, e nem aos preceitos cristãos moralistas da época. Todavia, o Exu e a Pombagira foram mantidos nos porões subterrâneos da Umbanda fazendo parte da ala secreta, com acesso para poucos. 

Ortiz (1999) afirma, que os Exus e as Pombagiras não se submetiam as profundas modificações exigidas pelas doutrinas da Umbanda, dessa forma, eram expelidos para o mundo das trevas, denominado de Quimbanda, remanescente da Macumba. Nesse sentido, o Exu foi único orixá negro que não foi possível branquear (BASTIDE, 1985; ORTIZ, 1999). Entendemos que o sincretismo intencional[11], por questões ideológicas, em relação ao Exu com Santo Antônio[12], não funcionou a contento, por isso o Exu permaneceu como o último e único orixá a permanecer negro, caracterizando, dessa forma, um processo de significativa resistência das religiões afro-brasileiras. Outra tentativa de branqueamento de Exu foi através da figura mítica de Zé Pilintra, que encarna o arquétipo do malandro carioca, vestindo-se de terno e chapéu branco e gravata vermelha, ou seja, fugindo do estereotipado Exu de capa preta e vermelha, que lembra a figura do diabo cristão (MOURA, 1988).

Todavia, esse branqueamento advindo de um sincretismo intencional, só foi possível graças à memória africana que percebeu a similaridade dos orixás com os santos católicos, que possuíam determinados elementos analógicos correspondentes a uma divindade do panteão africano, como exemplo Iansã, orixá das tempestades, raios, da mesma forma Santa Bárbara, que é invocada nos dias de temporais, raios e trovões, Ogum, senhor da guerra e da metalurgia, com São Jorge, santo guerreiro, que utiliza-se de elementos forjados por metalúrgicos, tais como, espadas, lanças e escudos de aço. Para umbandistas, isso fez com que este orixá não perdesse sua autonomia, face ao santo católico (ORTIZ, 2012). Assim, essas novas caras dos orixás negros sincretizados com os santos católicos brancos, foram utilizadas intencionalmente para fugir dos estereótipos considerados atrasados.

No processo de branqueamento, a Umbanda buscou uma aproximação com a ciência, com a intenção de ser uma 'religião-ciência'. Para Zespo (1946, p. 15) “a Umbanda é uma ciência porque, não se limitando à aceitação cega da imposição ritualística sacerdotal dogmática, indaga, pesquisa, investiga o dito sobrenatural servindo-se dos métodos mediúnicos kardecianos”. Para Oliveira (2008) essa teoria de religião-ciência na Umbanda ocorreu a partir da aproximação de grupos umbandistas com alguns grupos espíritas kardecistas, onde estes últimos influenciaram os representantes da Umbanda, que haviam se apropriado do método kardecista para substituir as velhas práticas e métodos oriundos da Macumba, que eram considerados atrasados e não tinham quaisquer comprovações científicas.

O método científico trazido por Zespo (1946) e por Oliveira (2008) era o de investigação, experimentação e comprovação, referente a fenômenos advindos de manifestações provenientes da experiência religiosa, tais como, dentre outros, do transe, da clarividência, da clariaudiência, das curas mediúnicas e da teoria do reencarnacionismo. Não havia quaisquer relações destas práticas científicas supracitadas com as práticas advindas dos conhecimentos empíricos dos pajés indígenas e dos curandeiros africanos, que foram adquiridos através de observações no que se refere à medicina herbácea, ou aos banhos de ervas com fins terapêuticos ou de descarrego. Essas práticas dos pajés indígenas e dos curandeiros africanos eram consideradas curandeirismo, portanto, incompatíveis com os avanços e os conceitos de modernidade provenientes da Europa e dos Estados Unidos. Nesse sentido, a Umbanda a partir de 1941, procurou afastar-se dessas práticas para que pudesse consolidar sua legitimação, enquanto uma religião A partir do final da segunda guerra mundial, em 1945, e do fim da ditadura Vargas, a Umbanda, contando com um grande número de fiéis buscará expandir-se mais ainda, valendo-se do novo governo constitucionalista que irá lhe propiciar uma maior liberdade. Com isso, ela irá investir em nível nacional, o que resultará numa grande eclosão de adeptos, acentuando de sobremaneira o seu processo de expansionismo.

A Umbanda também começou a difundir-se rapidamente em outros estados e regiões do Brasil, ganhando, como no Rio, novos adeptos e exercendo influência sobre várias religiões afro-brasileiras regionais. Da mesma forma que o Estado brasileiro dentro do qual surgira, a Umbanda agora começava a exercer uma influência homogeneizante sobre muitas tradições religiosas regionais, transformando aquilo que as distinguia e molda-as na direção de uma cultura religiosa nacional afro-brasileira (BROWN, 1985, p. 18).

A partir dos anos de 1950, a Umbanda amplia suas federações, tanto em nível municipal, quanto estadual e federal, e abre vários terreiros em todo Brasil. Apesar dos avanços, as rivalidades existentes entre as federações umbandistas aumentarem significativamente, com isso, a ideia de resistência contra qualquer tipo de centralização e unificação ou codificação foi se tornando impossível. As federações umbandistas contrapunham-se às federações espíritas, pois estas últimas se uniram em torno de uma única doutrina codificada, sem que houvesse quaisquer rivalidades entre elas.


4 AS POSIÇÕES IDEOLÓGICAS ASSUMIDAS PELA UMBANDA NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960, E OS CONFLITOS COM A IGREJA CATÓLICA

A partir de 1952, parte da igreja católica se posicionou desfavoravelmente às práticas espíritas, após um senso que revelou por meio de dados estatísticos uma perda de adeptos no terreno do campo religioso católico, tendo em vista, principalmente, as investidas protestantes e a expansão do espiritismo. No Brasil, como a Umbanda, de Zélio de Morais, fundada em 1908, estava próxima do Espiritismo Kardecista, também vira alvo de alguns segmentos da igreja católica que em 1953, com a recém criada Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) chegou à conclusão, após estudos realizados pelos bispos, que a Igreja estava perdendo espaço pelo fato de alguns de seus fiéis estarem abandonando o catolicismo e se debandando para outros segmentos religiosos. Isso representava uma ameaça à supremacia católica, e entre essas ameaças, dentre outras, estava o protestantismo, o comunismo, a maçonaria e a Umbanda, que se encontrava em acelerado processo de expansão e legitimação, e ainda, estava próxima dos preceitos religiosos adotados pelo espiritismo. Porém, para a igreja católica, o “espiritismo é nesse momento a ameaça doutrinária mais perigosa à religiosidade natural do povo brasileiro” (KLOPPENBURG, 1964, p. 17).

A Umbanda entra para cenário político e fica evidente a presença de duas Umbandas, formando dois grupos hostis entre si. De um lado, a Umbanda pura ou branqueada pertencente à classe média, e de outro, uma Umbanda remanescente da Macumba africanizada, pertencente à classe baixa da sociedade. Com essa postura abre-se uma brecha para o fortalecimento e o retorno dos elementos africanos em determinados seguimentos. Como exemplo, o seguimento liderado por Tancredo da Silva Pinto, em 1952, conhecido como Tatá Tancredo, o “Papa” da Umbanda que tornou-se a maior liderança da Umbanda africanizada, e fundou a Federação Espirita de Umbanda (FEU). Ele retoma as favelas trazendo de volta os elementos africanos que foram suprimidos ou excluídos durante a ascensão da Umbanda pura ou branca, como eram denominadas (BROWN, 1985). Nesse mesmo ano supracitado, Benjamim Figueiredo Gonçalves, fundador da Tenda Espírita Mirim, que havia sido criada por ele em 1924, teve grande participação nas articulações no Congresso Espírita de Umbanda de 1941. A partir daí ele começou a distanciar-se substancialmente de Zélio de Morais, e deu origem a um outro seguimento de Umbanda (CUMINO, 2011).

Em 1961, no Rio Grande do Sul surge a chamada Umbanda Cruzada ou Umbanda Traçada, que com o passar do tempo recebeu a denominação de Linha Cruzada, terminologia esta última utilizada inicialmente nos meios acadêmicos, mas depois passou a ser empregada de modo geral pelos consulentes que a praticavam. 

Destacamos que ocorreu por parte da Linha Cruzada o resgate e retorno dos elementos afros renegados, anteriormente, pelo processo de branqueamento da Umbanda considerada branca e pura. Ressaltamos, porém, que a Linha Cruzada é formada por elementos da Umbanda branqueada e por elementos das nações africanas que fazem parte da estruturação do Batuque. Para Correa (1998) a Linha Cruzada é depositária dos cultos e rituais da Macumba carioca e da Macumba paulista. Esse processo teve início nos anos de 1950, quando a Macumba carioca passou ser alvo principal das rondas policiais, tendo em vista que a Umbanda ao utilizar um sincretismo intencional passou a se denominar de Espiritismo de Umbanda, e passou a ser menos perseguida.

Por outro lado, as religiões afro-brasileiras que davam ênfase às matrizes africanas eram rotuladas como Macumba. Dessa forma, esses segmentos passaram a se denominar como Umbanda Mista, Umbanda Traçada ou Cruzada, e também Umbanda Omolocô (CUMINO, 2011).

Ocorreu um retorno a tudo aquilo que foi repudiado pelos representantes da Umbanda, desde o seu nascedouro até a consolidação de sua ascensão. Nessa mesma década de 1960, Tancredo da Silva Pinto realiza uma pesquisa que comprova a ascensão do seu segmento umbandista reafricanizado junto às favelas do Rio de Janeiro. Tancredo se tornou uma liderança afrodescendente dentro desse segmento umbandista pela restauração e resgate da identidade africana.

A Umbanda desde sua instauração, em 1908, foi se adaptando de acordo com as transformações sociais e políticas. Dessa forma, o retorno dos elementos afros que foram excluídos, durante o processo de sua estruturação, no decorrer de várias décadas, provocou uma certa elitização em seu quadro de adeptos, tendo em vista as ressignificações efetuadas pelos seus fundadores, que acabaram utilizando métodos seletivos ao excluir partes do arcabouço simbólico pertencente à Macumba. Neste contexto, com o passar do tempo, as classes menos favorecidas foram colocadas numa condição marginal estabelecida por uma hierarquia piramidal, constituída basicamente sob a influência da classe dominante, que de cima para baixo, selecionava e controlava quase tudo, buscando sempre modelar as culturas de massas, conforme os modelos estruturais estabelecidos pela cultura dominante. 

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (BOURDIEU, 2012, p. 10).

Cumino (2011, p. 49) argumenta que “a ideia de evolução da religião é presente no positivismo de Augusto Comte, que acredita que a religião era evolução da magia e que seria também superada pela ciência”. Anteriormente, a realização do Concílio de Vaticano II (1962-1965), a igreja católica adotava a ideia de que com o passar do tempo todas as religiões evoluiriam e se tornariam cristãs (CUMINO, 2011, KLOPPENBURG, 1973). Adotavam uma postura de rejeição total às práticas advindas das religiões afro-brasileiras e a todo tipo de espiritismo em geral, e também, as duplas pertenças, as quais combatia, imputando caráter de herege a todo aquele que a praticasse. Mas, após a realização deste Concílio, a sua postura mudou radicalmente, em relação, tanto ao espiritismo, quanto às religiões afro-brasileiras, principalmente, à Umbanda, a qual anteriormente combatia ferozmente (BROWN, 1985; ORTIZ, 1999). 

E procura pela aproximação com essas religiões, uma linha de desenvolvimento cultural que ajude o povo a ser mais cristão, mas sob uma forma brasileira (...). A Igreja já perdeu muito tempo em hostilidade. Agora chegou o momento de buscar, no Espiritismo e na Umbanda, os elementos vivos que sirvam à Igreja no seu trabalho de evangelização (KLOPPENBURG, 1973, p. 6).

Essa nova postura da igreja católica, de aceitação das religiões "espíritas" não se devia somente como efeito das decisões tomadas pelo corpo burocrático de religiosos no Concílio de Vaticano II, diante da pluralidade de crenças e cultos de outras religiões que passaram a existir, decisões essas que tiveram seu importante valor. Mas, essas novas posturas se deram, sobretudo, pela força das imposições trazidas como resultado das transformações sociais, econômicas e políticas mundiais que atingiam, também, a Igreja. A disputa de mercado continua subjacente às posturas da Igreja Católica, só que com outras roupagens (ORTIZ, 1999).

O posicionamento político ideológico da Umbanda a partir do golpe militar em 1964 foi de extrema direita. Mas, um pequeno número de políticos umbandistas existentes que eram de esquerda, mormente, no Rio Grande do Sul e em São Paulo foram imediatamente caçados. Todavia, isto não aconteceu com os líderes umbandistas residentes no Rio de Janeiro (BROWN, 1985). A Umbanda, no entanto, sob essas lideranças conservadoras procurou ganhar gradativamente a simpatia dos militares. Muitos militares passaram a ser doravante chefes de terreiros. Essas mesmas lideranças conservadoras procuraram se colocar à disposição do governo militar recém implantado, no sentido de serem informantes e denunciantes da presença de comunistas entre seus membros. Embora o governo não tenha aceito tal papel, fica claro que a Umbanda se predispôs a servir como aliada dele e comungou das mesmas ideologias de repressão em troca de alguns privilégios e benefícios. Portanto, Foi sob a ditadura militar que o registro dos centros de Umbanda passou da jurisdição policial para a civil, que a Umbanda foi reconhecida como religião no censo oficial, e que muitos dos seus feriados religiosos foram incorporados aos calendários públicos locais e nacionais, de caráter oficial (BROWN, 1985, p. 35-36).

Mediante essas tendências supracitadas, adotadas pela Umbanda de ligar-se e colocar-se a serviço dos militares, o umbandista (Tatá) Tancredo da Silva Pinto rompeu com esses paradigmas, perfazendo o caminho de volta às origens africanas, trazendo para o seu novo segmento elementos que eram considerados primitivos e atrasados, sob o ponto de vista da classe dominante. Com isso, ele atendeu os anseios da parcela da classe social que fora colocada às margens da sociedade, e perdera parte de seus símbolos e de seus significados correlatos. Percebia-se que “a força do pensamento dominante fazia com que os afro-brasileiros se sentissem inferiorizados devido às suas origens africanas, buscando escondê-las com o abandono de suas tradições” (SOUZA , 2007, p. 142).

Compreendemos que a Umbanda ao buscar a sua legitimação e o seu reconhecimento, desde seu nascedouro até a sua estruturação, aproximou-se da elite dominante, e isso redundou numa separação de classe social, entre os ricos e os pobres, principalmente, com o crescimento das favelas do Rio de Janeiro e das grandes capitais do Brasil, onde essas pessoas pobres foram jogadas para condições cada vez mais distantes da realidade da classe média. Nesse contexto, a Umbanda deixa de ser uma religião do povo, das classes marginais e passa ser uma religião voltada para a classe média.

A Umbanda procurou ao longo dos anos se consolidar no campo religioso brasileiro como uma religião cristianizada. Para isso, utilizou de um sincretismo intencional, adotando alguns elementos do Espiritismo Kardecista, e também mantendo a adoção de alguns santos católicos, procurando por meio desses elementos atraír as pertenças e a aceitação da classe dominante. Também, buscou se adequar aos movimentos e às mudanças sociais, econômicas e políticas, procurando colocar-se numa oposição estratégica, sempre aberta a novas possibilidades que lhe proporcionasse vantagens e consolidasse a sua legitimação, mesmo que tivesse que se submeter à ressignificações de seus símbolos, ou a negação de sua origem africana.


5 UMBANDA, DO APOGEU NOS ANOS DE 1970, AO DECLÍNIO A PARTIR DOS ANOS DE 1980

Nos anos de 1970, a ascensão da Umbanda continuava crescendo em proporção muito acelerada, e isso pode ser mensurado através de algumas festas comemorativas realizadas, como exemplo, a festa de Yemanjá ocorrida em São Paulo, em 1975, que atraiu um público estimado em torno de trezentas e trinta mil pessoas. Nesse período, também, houve, paralelamente, um crescimento acentuado de federações e centros umbandistas em várias capitais brasileiras. Para Cumino (2011) em 1979, realizou-se uma das últimas grandes festas dedicada à Yemanjá, em Praia Grande, município do estado de São Paulo, e segundo o jornal informativo, Integração Umbandista, publicado nesse mesmo ano, de acordo com uma estimativa feita, registrou aproximadamente um milhão de pessoas presentes a esta comemoração. Foi o ponto mais alto já ocorrido, de uma festividade umbandista vivenciada por seus fiéis. Entretanto, “no ano seguinte, 1980, a Folha de São Paulo comenta que: a tradicional Festa de Yemanjá (...) não recebeu o mesmo número de pessoas dos anos anteriores, estimando o reduzido número de 20 mil pessoas presentes” (CUMINO, 2011, p. 172).

Num primeiro momento, esse fenômeno, do declínio vertiginoso da Umbanda, tem início com o avanço progressivo do protestantismo. Esse avanço se deu por meio de uma grande exaltação do sagrado, que é uma característica desse segmento religioso. Esse fenômeno acentuou-se de forma sistemática nas classes menos favorecidas, carentes e dominadas. Porque apesar da religião estar sempre atrelada ao opressor, e em si mesma caracterizar-se como uma forma de dominação, ela sempre oferece uma possível saída através da pedagogia da promessa, à retomada de alguma forma de poder, de compensação, especialmente daquilo que não está ao alcance de seus fiéis, no plano político, e também, no econômico (MENDONÇA, 1990).

Num segundo momento, a Umbanda entrou num processo de esvaziamento em relação aos fiéis adeptos. Este refluxo tem várias causas, uma delas, é a ascensão do neopentecostalismo, que apresenta uma nova oferta religiosa, e utilizando-se dos meios de comunicação de massa consegue influenciar milhões de pessoas através de suas igrejas eletrônicas, por meio do rádio e da televisão (CUMINO, 2011). Nesse sentido, a Umbanda tornou-se vulnerável aos ataques fulminantes dos neopentecostais que a demonizavam, e utilizavam termos pejorativos e muito agressivos em seus argumentos contra ela. A diminuição gradual dos umbandistas deu-se em primeiro lugar devido à desorganização existente entre as federações, suas práticas e formas de fazer política. Também, devido à ausência de uma doutrinação sistemática e orientada, da falta de espaço na mídia, e do despreparo de grande parte de seus sacerdotes.

Um outro fator que contribuiu para colocar a Umbanda em desvantagem em relação às religiões protestantes foram as mudanças do pensamento e dos valores vinculados por meio da mídia que evidenciavam um modelo avançado, moderno, advindo da Europa e dos Estados Unidos. Com isso colocava como atrasados os valores advindos das culturas africanas e indígenas que faziam parte da base estrutural e doutrinária da Umbanda. Ressaltamos que os elementos indígenas constituíam motivo de orgulho para os umbandistas. A cultuação destas raízes seria naquele momento, algo atrasado, fora de moda, fora dos padrões de progresso e modernidade. Porque os olhos da sociedade e das classes emergentes estavam voltados somente para o que era europeu e estadunidense como o padrão ideal de vida. Neste diapasão, a mídia coloca, agora, como beleza, o que é americano e europeu; a cultura tupiniquim cai de moda. A Umbanda, assim, estabelece uma contracultura de resistência, e seus adeptos têm a seu favor apenas a experiência religiosa individual como âncora para seguir (CUMINO, 2011, p. 181).

Para Lísias Negrão (1996) ocorreu na Umbanda uma inversão de alguns símbolos afrobrasileiros, mágicos, não racionalizados, em suas tentativas de legitimação. Ela racionalizou mitos e ritos, sempre os submetendo ao crivo das concepções ideológicas e teológicas da classe dominante.

Falar em teologia no contexto da Umbanda pode parecer tão fora de lugar. Como fenômeno religioso popular; estaria ela mais próxima da sistematicidade objetiva própria ao pensamento mítico do que da coerência intencionalmente buscada pelo pensamento teológico, conforme oposição elaborada por Bourdieu em sua análise do campo religioso (NEGRÃO, 1996, p. 145-146).

Assim, se deu uma espécie de migração em massa de umbandistas para outros segmentos religiosos, como exemplo, para o Espiritismo, o Protestantismo, o Candomblé, e para os movimentos da New Age. Mas, a grande maioria foi para as igrejas neopentecostais que hostilizavam e demonizavam a religião Umbanda. Na reflexão de Ricardo Mariano (2007), o simples fato de demonizar uma religião de matriz africana não caracteriza totalmente uma intolerância religiosa, mas sim, é uma forma agressiva de disputar um mercado religioso. Demonizar e considerar outra tradição religiosa como errada é uma forma empreendida em diversas culturas para se atrair adeptos. Neste contexto, o neopentecostalismo vale-se da liberdade de expressão[13] existente em nosso país, e dessa forma, não tem sua liberdade religiosa restringida pela justiça, em função “de considerar demoníacas certas crenças e práticas de seus adversários religiosos” (MARIANO, 2007, p.126).

Para Ari Pedro Oro (1997) a intolerância dos neopentecostais face às religiões de matrizes africanas, configura-se como uma prática de crime de racismo.97 Constituem, de certa forma, uma heterofobia, que significa, fobia do outro, do diferente de nós, o que na realidade caracteriza recusa do outro e produz belicosidade, violência e agressividade. Outro ponto apontado por Oro é a desunião das pessoas no campo das religiões afroabrasileiras e, também, a maleabilidade e ambiguidade, que sempre fez parte dos ethos sincréticos e tradicionais.[14]

Maleabilidade e ambiguidade estas que no passado foram instrumentos essenciais para a produção de cultura, e a concomitante legitimação e estruturação das religiões de matrizes afro-brasileiras. Nos dias atuais, entretanto, esse mesmo sincretismo é remanejado, e sua utilização se concretiza por meio da apropriação de alguns elementos das religiões afro-brasileiras, especialmente, os da Umbanda, pelos seguimentos neopentecostais, principalmente, pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD),

Porém, a Iurd não vai somente se apropriar e ressemantizar pedaços de crenças e concepções procedentes de outras igrejas e religiões que, como ela estão em disputa no campo religioso pela conquista dos fiéis. Como veremos a seguir, ela vai também efetuar um movimento contrário de grande envergadura, a saber: exacerbar a presença do religioso no espaço público (templos e catedrais, na mídia, na política grandes espaços públicos); superdimensionar o poder do demônio; hipertrofiar os rituais de exorcismo; redimensionar o significado do dinheiro (ORO, 2006, p. 323).

A Umbanda, nesse sentido, tornou-se vulnerável perdendo muito espaço, para a sua adversária principal, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que se apropria de seus principais símbolos e os ressemantiza, e ainda, atua nas porosidades das fronteiras, local por onde perpassa um sincretismo que sempre foi instrumento de adaptação e de sobrevivência, e agora é utilizado por ela de forma inversa, às avessas. Isso com o intuito de desconstruir as bases estruturais da Umbanda, procedendo, dentre outras práticas, a de demonização de suas divindades; de condenação da evocação e da invocação de espíritos; e de condenação do uso de imagens, que a IURD considera como formas de idolatria, buscando nas palavras estabelecidas pela Bíblia, respaldo para corroborar essa ideia (MARIANO, 2007). Dessa forma, a IURD, por possuir uma bancada legislativa significativa, vale-se dessa condição política privilegiada, que a coloca na posição de poder dominante, para atacar a Umbanda, sua adversária principal no campo religioso. A IURD pratica tais atitudes hostis, como podemos perceber, tanto nas sessões realizadas nos plenários, quanto nos meios de comunicação, por meio da mídia televisiva, escrita e falada. Dessa forma, a IURD respaldada pelo seu poder de nomeação[15] rotula a Umbanda como uma religião demoníaca (ORO, 2006).

Como podemos perceber, o papel do sincretismo na formação da Umbanda, ao longo do tempo, se expressou de variadas formas, ora como processo de resistência, ora como acomodação em um processo pacificador ou mediador, e ora como processo intencional, visando atingir um ou mais objetivos. Atualmente, alguns segmentos afro-brasileiros estão tentando livrar-se de elementos sincréticos, buscando o estado original de pureza de seus cultos tradicionais. Nesse sentido, o anti-sincretismo[16], ou seja, a negação do sincretismo, por parte de alguns grupos afro-brasileiros, caracteriza a vedação das brechas, ou das porosidades existentes como resultado dos encontros culturais, que em maior ou menor intensidade, dependendo dos contextos históricos e sociais, se fortalece ou se fragiliza. Assim, pode-se “recuperar a autoridade sobre uma tradição sagrada que deve ser reintegrada como antídoto contra uma sociedade que se soltou de suas amarras institucionais” (ORO, 1996, p. 142).

Entendemos que a Umbanda é eminentemente sincrética desde seus primórdios. Ela é o resultado de um processo sincrético contínuo. Sincretismo este intrínseco à sua estruturação, e do qual valeu-se de diversas formas para que pudesse se adaptar perante às transformações socioculturais, sociopolíticas e socioeconômicas, e sócio-religiosas, ocorridas desde a sua instauração até os dias atuais.


[1] Polícia política é um corpo de policiais à serviço de um poder governante, atuando como instrumento de repressão e censura, principalmente, de caráter político. Entretanto, atuava no Brasil, na era Vargas, como um canal de repressão em relação às religiões afrobrasileiras, por suas práticas religiosas serem consideradas, nesse período da história, como atividades criminosas e subversivas. A Polícia política foi, na era Vargas, chefiada por Felinto Müller. Ressaltamos, que a polícia política foi criada no Brasil, no ano de 1922, e desenvolveu as suas atividades repressivas de 1930 a 1983 (BASTOS, 2009)
[2] Além da Umbanda cristã de Zélio de Moraes, surgiram outras ramificações, tais como: Umbanda branca, Umbanda popular, Umbanda pura, Umbanda esotérica ou iniciática, Umbanda de caboclo, Umbanda de jurema, Umbanda astrológica, Umbanda alma de angola, Umbanda omolokô, Umbandaime, Umbanda sertaneja, Umbandomblé, Umbanda eclética e Umbanda sagrada ou natural (CUMINO, 2011).
[3] A partir dos anos sessenta surgiu no Rio Grande do Sul, a Linha Cruzada ou Quimbanda, uma religião afro-brasileira sincrética, que contém elementos da Umbanda e do Batuque (nações) onde são cultuados os Exus e as Pombagiras como figuras centrais de sua ritualística. A Linha Cruzada ou Quimbanda é uma herança da Macumba carioca e paulista (CORREA, 1998).
[4] A primeira fase desse sincretismo contínuo iniciou-se com o Calundu, no final do século XVI. A segunda fase deu-se com a Cabula, no início do século XIX, e a terceira fase com a Macumba, no final do século XIX.
[5] Aspectos fenótipos são as características, os comportamentos e o desenvolvimento que se pode observar num povo. Diferentemente os aspectos genótipos são aqueles que dizem respeito à constituição genética de um indivíduo, sua herança genética celular, que é herdada de seus progenitores.
[6] Baratizil significa o berço da primeira humanidade, ou seja, da raça vermelha, que surgiu no planeta Terra, no local onde hoje se encontra o Planalto Central brasileiro (RIVAS NETO, 2007).
[7] Assim considerado por nós, Zélio Fernandino de Moraes, juntamente com alguns amigos seus espíritas kardecistas e intelectuais. Entretanto, para Diana Brown (1985) a Umbanda teve sua fundação por volta de meados da década de 1920, com o funcionamento de forma mais efetiva, da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, em Niterói (RJ). Ela considera o período anterior à esta década de 1920, como um período primordial da Umbanda. Para ela, em meados da década de 1920, Zélio e seus amigos, espíritas kardecistas e intelectuais, “membros da classe média voltaram-se para as religiões afro-brasileiras como uma forma de expressar seus próprios interesses de classe, suas ideias sociais e políticas e seus valores” (BROWN, 1985, p.10). Com isso, podemos deduzir que para Diana Brown (1985) esses primeiros dez, doze anos anteriores à 1920, são resultante de um construto teológico criador do mito fundador da religião Umbanda.
[8] Negro ladino era o negro domesticado, submisso e ordeiro, que prestava serviços domésticos junto à Casa Grande, residência do senhor proprietário de escravos (MAESTRI, 1994)
[9] Consciência nacional é uma ideologia política pautada na ideia de nacionalismo, que por sua vez, congrega a ideia de defesa dos princípios pertinentes à soberania nacional. É um sentimento de significativa valorização concernente à uma nação determinada (HOBSBAWN, 1994).
[10] Denomina-se Estado Novo o regime político implantado por Getúlio Vargas, no Brasil, em 1937, caracterizado por apresentar um forte nacionalismo, o combate ao comunismo e a centralização de poder. Regime de caráter extremamente autoritário que durou até 1945.
[11] Sincretismo intencional é aquele que tem uma intenção objetiva a ser alcançada, não se perfaz espontaneamente. É um processo por meio do qual se procura proceder à apropriação de alguns valores de uma determinada sociedade, por meio de empréstimos, de adaptações e de negociações com um objetivo específico e determinado. O sentido do sincretismo intencional mencionado no decorrer de minha pesquisa, foi aquele utilizado para que a religião professada pela classe dominada não ficasse à margem da sociedade dominante. Diferentemente, o sentido do sincretismo intencional, acima mencionado, se deu às avessas, uma vez que não partiu de uma classe dominada que aspirava se adequar de acordo com os valores vigentes de uma determinada sociedade dominante, para que pudesse ser aceita e se legitimar. Mas, pelo contrário, o sincretismo utilizado buscava conservar e manter seu poder de dominação sobre a classe dominada. Ressaltamos, que o sincretismo intencional, tem sempre como objetivo, também, competir no e pelo mercado religioso (CAMURÇA, 2009).
[12] O sincretismo do orixá Exu se deu com santo Antônio de Pádua devido a algumas características similares apresentadas entre ambos, tais como, a personalidade forte, o uso de espadas (gladiador), a prática de lutar pelas classes marginalizadas, e por defenderem o matrimônio, ou seja, a aproximação e coabitação do homem com a mulher (ORTIZ, 1999)
[13] A liberdade de expressão significa o direito que os cidadãos, de uma determinada sociedade, têm de expressar livremente seus pensamentos e suas opiniões. É uma liberdade fundamental inerente às sociedades democráticas atuais, onde a censura, em contrapartida, não encontra espaço, não se efetua, não ocorre, portanto. A liberdade de expressão é um dos ideais políticos modernos, dentre outros, que surgiu na Grécia antiga e perdura até os dias atuais. No Brasil, a Constituição do império a garantia, e assim o foi até a Constituição Federal de 1937. Entretanto, no período do Estado Novo, com Getúlio Vargas, esse princípio constitucional desapareceu e a censura foi implantada no país com o objetivo de coibir, ferozmente, qualquer liberdade de expressão, inclusive, a de imprensa. Na Constituição Federal de 1946, essa liberdade voltou a ser assegurada no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, a livre manifestação do pensamento das pessoas, conforme estava disposto, não se endereçava àquilo que se referia à espetáculos ou à diversões públicas. Na Constituição Federal de 1967, o texto legal manteve a legalidade do exercício da livre manifestação de pensamento, mas, a condicionou à observância do estabelecido em relação a manutenção da ordem pública, da moral e dos bons costumes. E não podia haver, também, qualquer manifestação de pensamento que se opusesse ao governo. Com a edição da Constituição Federal atual, promulgada em 05 de outubro de 1988, esse direito ganhou maior amplitude, e a liberdade de expressão, em todas as suas formas, que é um direito fundamental e intransferível de todos os cidadãos brasileiros, passou a ser vivenciada plenamente no Brasil. O exercício deste direito, inclusive, é requisito essencial para que haja realmente uma sociedade democrática. Nesse sentido, a Constituição Federal supracitada, consagrou em seu artigo 1º, o Brasil se constituir num Estado democrático de direito. No seu art. 5º, inciso IV, garante aos indivíduos o direito da livre manifestação de pensamento, e no inciso VII, dispõe que, “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política” (BRASIL. Constituição Federal (1988), 2013, p.12). E por fim, no art. 220, dispõe que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição", e em seu § 2º, estabelece que "é vedada toda e qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística" (BRASIL. Constituição Federal (1988), 2013, p.179).
[14] O crime de racismo no ordenamento jurídico brasileiro, é um crime imprescritível e inafiançável e sujeito à pena de reclusão, que é o tipo de regime mais severo, por ser totalmente fechado, cumprido com o indivíduo preso em tempo praticamente integral. Imprescritível, porque não existe lapso temporal previsto para que a atividade persecutória do Estado, a ser desenvolvida por meio de sua função jurisdicional, se encerre. Inafiançável, pois não cabe o arbitramento de fiança, que é uma quantia a ser paga em espécie, para que o indivíduo possa aguardar, em liberdade, o julgamento do ato delituoso praticado por ele, conforme determina o art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal de 1988, e a lei de n. 7.716/89.
[15] Poder de nomeação é o poder de nomear o outro, dar nome e classificar, categorizar, acusar ou proceder a quaisquer esteriótipos (BOURDIEU, 2012)
[16] Anti-sincretismo é um processo de reafricanização que faz parte do Candomblé. Os adeptos do Candomblé de nagô adotaram essa filosofia, de se livrar de tudo aquilo que fosse sincrético após “as viagens empreendidas por africanos ou seus descendentes às suas terras de origem, das quais retornaram trazendo os conhecimentos e liturgias para fundar ou aperfeiçoar seus terreiros” (SILVA, 2006, p. 153).

O mistério da Macumba :  curiosas revelações sobre os ritos africanos no Brasil Por Carlos Alberto Nóbrega da Cunha (Matéria publicada n...