quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O mistério da Macumba
curiosas revelações sobre os ritos africanos no Brasil

Por Carlos Alberto Nóbrega da Cunha


(Matéria publicada no Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 04 de setembro de 1923, p. 1 e 5. O português foi atualizado para as normas vigentes. Notem o preconceito em toda a matéria.)


- Introdução do redatorMacumba é o nome de um instrumento musical, idiofônico, semelhante ao reco-reco, que era usado durante as práticas afro-religiosas, que ao longo do tempo passou a designar a própria prática. Em razão do racismo estrutural e da desconsideração das religiões afro-brasileiras, impôs-se à Macumba um sentido pejorativo, de feitiço, "magia negra", embuste, fetichismo, entre outros adjetivos. No entanto, na mesma época, entre o final do século XIX e início do XX, havia anúncios nos jornais das orquestras de Macumba, que animavam os clubes de dança e as festividades populares. Espera-se que esse artigo colabore para compreender o pensamento de parte da sociedade brasileira no início do século XX e de como essa sociedade olhava para as práticas afro-religiosas.




Um esboço da cosmogonia, segundo os ensinamentos dos “Pais de Santo” (1)

Uma revelação desconcertante para o leitor: os povos bárbaros da África, como os índios selvagens da América, não são fetichistas, nem praticam simplesmente o animismo: são espiritualistas.

Lançada assim, a afirmativa causará espanto, pois a opinião universal – contraditada apenas de maneira vaga por poucos sábios – admite piamente os ensinamentos de missionários que viram feitiço em tudo que se afastava da sua fé ou de viajantes e etnógrafos materialistas que, observando as coisas superficialmente, reduziram a totemismo ou a animismo todas as manifestações religiosas, cujo sentido interno não puderam penetrar.

A verdade, entretanto, é o contrário. E a prova, quanto aos africanos (dos índios tratarei quando se me oferecer outra oportunidade), pode ser encontrada aqui mesmo no Brasil, entre os descendentes dos milhões de escravos que durante três séculos de martírio, amassaram com suor e sangue os alicerces econômicos da grandeza nacional. Eles trouxeram para o solo americano costumes, danças e ritos originários de suas terras e seus descendentes ainda os conservam e praticam na forma quase primitiva, se bem tenham sido influenciados pelo Catolicismo.

Estudando-se esses ritos em torno dos quais já correm lendas, pode-se observar a capacidade criadora de raças inferiores, que não obstante um grande atraso intelectual, tinham alcançado, desde tempos imemoriais, uma alta concepção da vida e do universo, notável, principalmente, pela sua extraordinária semelhança com nossa concepção bíblica, segundo a moderna exegese dos tratadistas do Espiritismo e da Teosofia, fora do espírito dogmático do Catolicismo.

Todas as formas religiosas africanas praticadas no Brasil, com denominações várias e pequenas divergências de detalhes no dogma e no ritual, conforme as regiões de onde procedam, são, na essência variantes da Macumba, rito que me parece a expressão mais primitiva e rudimentar do espiritualismo. Senão, vejamos.

 


O DOGMA

O dogma da Macumba é simples, ao contrário do ritual que, como o de todas as religiões no seu período primitivo, é tremendamente complicado.

Para sua fácil compreensão, convém ficar salientado aqui a existência das variantes a que me referi e que são seitas ou escolas, simples maneiras, ligeiramente diversas, de se interpretar o dogma ou cumprir o ritual, peculiares às diferentes raças e a cada uma das quais os adeptos, entre si, dão a denominação de linha de Umbanda, dos povos de Angola e do Congo, que é a mais conhecida nesta capital e que recebeu mais direta e profunda influência do Catolicismo; a linha do Candomblé, praticada largamente na Bahia pelos indivíduos da raça nagô, oriunda de certa região vizinha do Dahomey, à qual etnógrafos europeus atribuem, não sei por que, uma religião do sangue, cuja natureza, infelizmente não sabem explicar nas suas obras; a linha de Gêge, dos indivíduos da raça do mesmo nome; e outra, ainda, de menor vulto, dada a diminuta porcentagem de representantes de outras raças negras no Brasil.

A linha de Umbanda, suponho, deve ser uma forma eclética, pois parece uma verdadeira fusão das outras linhas, das quais contém inúmeras características. Por esse motivo e pela dificuldade de examinar, num simples artigo de jornal, cada uma delas, de per si, tomo aquela para objeto deste ligeiro estudo.



CONCEPÇÃO DO UNIVERSO E DA VIDA

Religião de povos atrasados e incultos, a Macumba não possui uma bíblia que coordene e transmita a doutrina. O seu dogma está na tradição oral dos adeptos e vem passando, de geração em geração, sendo, por isso, absolutamente impossível assinalar-lhe uma origem, um fundador, uma história.

Tendo feito, no bas-fond[1] carioca, um inquérito meticuloso e paciente que durou anos, cheguei, finalmente, depois de muita observação e muitos interrogatórios, ao seguinte esboço de cosmogonia segundo os ensinamentos dos “pais de santo”:

I – O Universo é único sob dois aspectos: um visível e o outro invisível. Todos os seres – anjos, homens, animais, plantas, pedras etc. – participam dessa dupla natureza e tem, portanto, dois aspectos: corpo e alma, isto é, visível e invisível.

II – Oxalá é o Rei do Universo, divindade suprema, pai e senhor, absoluto de tudo e de todos, cuja vontade criou e mantém o céu, a terra, o mar, os astros e todos os seres. (2)

III – Oxalá é bom porque é pai e é justo porque é bom. Tudo que faz é bom, mesmo parecendo mau para as suas criaturas e útil a elas, porque só ele sabe o que é bom, o que é justo e o que é útil.

IV – Oxalá mora no céu, num palácio maravilhoso e encantado, para lá da Lua, para lá do Sol, ainda mais para lá da região azul das estrelas.

V – É de seu trono, que há de ser deslumbrante pois que é o rei de tudo, administra o Reino por intermédio de uma infinidade de servidores, agentes da Sua vontade, fiéis executores de Suas ordens, que percorrem os quatro cantos do mundo como pássaros, como ventos.

VI – Os servidores de Oxalá são entidades de ordem espiritual, dotadas de poderes proporcionais ao atingidos na hierarquia. São três esses graus: Tata, Orixá e Quiumba. Correspondem, pelas funções na hierarquia do Catolicismo, a: Arcanjo, Santo e Alma.

Os Tatas têm a seu cargo a direção de grandes divisões do Universo e, deles, o maior é o próprio Oxalá, que recebe, por isso, a denominação de Tata Grande. Os Orixás são os zeladores dos reinos da natureza e dos agrupamentos humanos, como os santos católicos são padroeiros de países, cidades e instituições. Os Quiumbas são as almas dos mortos, que, separadas dos seus antigos corpos vagam no espaço, enquanto esperam novo nascimento. O Quiumba nasce para penar. Morre, voltando ao aspecto invisível e, no intervalo de duas vidas, vagueia pelos lugares em que viveu, acompanha e auxilia os parentes e amigos ou persegue os inimigos, se ainda lhes conserva ódio. À proporção que se sucedem as suas reencarnações, melhora, desenvolve-se, adquire conhecimentos e poderes e vai, assim, tornando-se aos poucos em Orixá. Este, por sua vez e pelo mesmo processo, pode chegar a Tata.

VII – Cada Quiumba encarnado, isto é, cada um de nós, não está abandonado sobre a superfície da terra, poque um Orixá, tal como o Anjo da Guarda do Catolicismo e o Protetor do Espiritismo, acompanha-lhe os passos atentamente, procurando orientá-lo no caminho bom e desviando os perigos que o ameacem. Esse Orixá é o Santo de cada um.

 

Por esse esboço que resumi, reproduzindo, com a mais próxima fidelidade, as ideias e até as expressões dos macumbeiros, verifica-se quanto eles se avizinharam da concepção bíblica, criando uma religião espiritualista bastante adiantada, no dogma, pelo menos, relativamente ao atraso intelectual em que se encontram anda hoje.

 

HIERARQUIA DOS ADEPTOS

A hierarquia dos adeptos comporta quatro graus: Cafioto (filho), simples crente que observa e cumpre as regras do rito; Ogan (masculino) e Gibonan (feminino), homem e mulher por cujo corpo, dotado de qualidades mediúnicas, os Orixás e Quiumbas se manifestam nos atos do cerimonial; Cambondo, ogan instruído nos principais mistérios da linha e que, por isso, desempenha as funções de auxiliar ou sacristão do Sacerdote; Pai e Mãe de Santo, sacerdote e sacerdotisa do rito, que conhece os mistérios, dirige as cerimônias, invoca os Orixás e os Quiumbas, faz e desfaz trabalhos.


 

O “CANZOL” (figura 1)

A Macumba não tem organização, nem há, entre as diversas linhas como entre os próprios “Pais de Santo” de uma mesma linha, nenhum entendimento, nenhuma opinião, nenhuma ideia de solidariedade que as ligue num corpo só com um aparelhamento estabelecido, conforme sucede às outras religiões.

Por isso, não há, também, Templos para o culto, nem escolas onde se preparem os candidatos ao sacerdócio. Cada “Pai de Santo” pontifica isoladamente perante o seu povo. Ele mesmo inicia os cafiotos no rito e ensina a mironga da sua língua aos que demonstram aptidão para o grau de ogan ou de gibonan, como prepara estes para cambondos, escolhe, instrui e sagra os futuros “Pais de Santo”. Daí, as pequenas divergências que se observam dentro da mesma linha na interpretação do dogma e na prática ritual.

Todo “Pai de Santo” tem, em sua casa, um compartimento especial, que recebe a denominação de Canzol, reservado para o oratório, no qual ele arma o estado do seu santo, espécie de altar como o das igrejas, contendo imagens e uma infinidade de objetos utilizados no culto ou no preparo dos trabalhos: espadas – símbolos dos poderes dos Orixás de raça branca, como Ogun (São Jorge) e Xangô (São Sebastião); flores, conchas e pedras do fundo do mar – símbolos dos Orixás das águas, como Yamanjá (Yara dos indígenas e Mãe d’Água dos caboclos); arco e flechas – símbolos dos poderes dos Orixás do mato, como Poê, Pombagira, Eixun; espingarda do tipo pica-pau – símbolos dos poderes dos caboclos; paus, bengalas, porretes – símbolos dos poderes dos Orixás do Congo, da Angola e da Guiné. Além desses objetos simbólicos há sempre no Canzol: facas, cachimbos, pólvora, cera, fumo, ervas, sementes, peles e chifres de animais, figas, bentinhos, giz, pedra de cevar, búzios, colares especiais de vidrilho ou de taquarinha, chamados guias de santo e que todo indivíduo, ao ser iniciado no rito, recebe das mãos do “Pai de Santo” e passa a usar, no pescoço, durante o resto da vida.

O Canzol conserva-se fechado comumente e só se abre, nos dias de cerimonial, para a retirada dos objetos do culto ou, em ocasiões especiais, para a realização de trabalhos secretos, como fechamento de corpo e outros, que não devem ser executados diante de todos os fiéis.

 

O RITUAL

O ritual da Macumba é uma série de cerimônias de invocação aos Orixás e aos Quiumbas, empregando-se cânticos, danças, encantamentos e operações mágicas para que eles, incorporando-se ao ogans ou às gibonans, possam entrar em comunicação com os fiéis e atender aos seus pedidos.

Tudo se passa ao ar livre, no terreiro, e, só em caso de chuva ou de receio da polícia, é que se executa dentro de casas e a portas fechadas. Forma-se uma grande roda em que homens e mulheres tomam posição em pé ou sentados em pedras, troncos, tamboretes ou bancos, sem ordem de colocação. Apenas os tocadores de atabaques (tambores cônicos feitos de troncos escavados) ficam todos mais ou menos juntos, devido à necessidade de uniformizar o ritmo, elemento de suma importância no cerimonial.

É, então, que o “Pai de Santo”, depois de ter feito algumas orações no Canzol aparece, acompanhado pelos cambondos e todo paramentado, isto é, metido numa camisa vermelha e com a cabeça enfiada num gorro da mesma cor, tendo nos lados e no forro uma cruz e um friso dourados, coloca-se no centro da roda e dá início ao cerimonial, fincando no chão uma vela acesa entre dois copos contendo água. Ajoelhado ante à vela, sacode com a mão direita e atira à frente o sangôrôrô (meia dúzia de búzios), cantando, ao mesmo tempo, o ponto de licença para abertura da mesa, isto é, da cerimônia a realizar-se, ponto que os fieis, em coro, repetem como uma ladainha. (figura 2)

“Dá licença, Oiê,

Dono do Reino?

Dá licença, Oiê,

Dono do Reino?”

Conforme a posição dos búzios – caindo metade branca, metade preta, ou a totalidade de uma cor só cor – considera-se dada a licença. Se, porém, há desencontro, repete-se a operação mais duas vezes e, segundo o resultado, faz-se ou não a cerimônia.

Dada a licença, levanta-se, suspende-se o ponto que estava sendo cantado e, em silêncio, reza mentalmente, durante alguns minutos, certas orações que só ele sabe e só transmite aos cambondos, quando os sagra sacerdotes. Depois, com o dedo, risca no chão o signo cabalístico do Orixá que vai arriar e começa a cantar, acompanhado pelo coro dos adeptos e pelo ritmo monótono dos atabaques, uma outra oração especial para invoca-lo, porque para cada um há signo e iman próprios. Ao mesmo tempo chama para o centro da roda e coloca, em duas filas, numa os ogans e noutra as gibonans, para a dança, que, então, se inicia e dá a impressão de uma quadrilha bárbara que os indivíduos se movem isoladamente, sem formação de pares, mas mudando de posição segundo o canto como se este marcasse o desenvolvimento do bailado. Os fieis repetem o iman [cântico], acompanhando-o com palmas.

Em pouco tempo começa a exaltação dos sentidos. A ladainha acelera-se, acelerando a dança e transformando a expressão fisionômica dos indivíduos, cujos olhos arregalados e fixos, parecem, então, encobertos por uma névoa vitrificada.

Aproxima-se o momento de descida do Orixá. O “Pai de Santo”, sentindo essa aproximação, cujo sucesso depende, em grande parte, da firmeza e da intensidade do ritmo – pois o que se está fazendo é verdadeiro encantamento magnético, operação empregada em todos os tempos, por todos os povos nos trabalhos de magia – entusiasma os fiéis, excitando-os com exclamações, para mais exaltar o canto e, assim, fortalecer a cadeia formada pela concentração em todas as atenções:

- É, mias fio! É, guenta iman, mias fio!

Outras vezes, e para o mesmo fim, intercala no canto o seguinte estribilho:

“Oi, chama, chama,

Que ele vem,

Oi, chama, chama,

Que ele vem!.”

É, de fato, vem. Lá pelas tantas, arria o Orixá sobre um ogan ou uma gibonan, tomando-lhe, de assalto, o corpo e incorporando-se-lhe com tal veemência que quase o atira violentamente ao chão. Levanta-se e, mal se apruma, entra a brincar, isto é, a dançar o que faz durante muito tempo. Depois, dirige-se o “Pai de Santo” e pergunta-lhe:

- Quê que mias fio qué? Ieu tá aí

Ouve os pedidos dos cafiotos. Um quer um pouco de boa sorte; outro, um conselho sobre determinado assunto íntimo que lhe segreda ao ouvido; outro, ainda, pesado, que desfaça o trabalho que lhe puseram em cima e lhe atrasa a vida;  aquele deseja um remédio para tal doença que o aflige; aquela pede uma benzedura para o seu pescoço inflamado. E há ainda quem peça muito mais.

O Orixá ouve, discute, atende e, às vezes, recusa também. Por fim, terminada a sua missão, pede que seja cantado um iman para despedida, pois deseja se retirar. O “Pai de Santo” ou ele mesmo, tira o canto. Quase sempre é o seguinte:

“Andorinha,

leva o meu anjo pro céu,

Andorinha,

leva o meu anjo pro céu!”

Mais alguns minutos de dança. De repente, com a mesma violência da incorporação, o Orixá se desprende. O ogan ou gibonan cai, então, redondamente sobre o solo, se um cambondo, que deve estar atento, não o amparar no último instante.



A RONDA DE OGUN OU DE SÃO JORGE

De todas as cerimônias rituais da Macumba, a mais interessante, pela originalidade do fato, como pelos detalhes, ao mesmo tempo cômica e trágica, apavorante e arrebatadora, é a ronda de Ogun, entidade da ordem dos Orixás, que os “Pais de Santo”, tanto os da linha de Umbanda como os das diversas outras, identificam com o São Jorge do Catolicismo. É, na opinião geral, um dos Orixás mais fortes.

Todos os anos, no seu dia, 13 de abril, faz-se uma grande festa em homenagem a esse Santo. O cerimonial é o mesmo quanto à abertura dos trabalhos, mas a invocação difere da usada em outros casos. Um cambondo escolhido para recebê-lo ajoelha-se diante da vela, e, cabeça pendida para frente estende o braço esquerdo, horizontalmente, em linha reta. O “Pai de Santo” tira, então, o seu iman:

“Ogun ê ê!

Ogun ê ê!

Depois que todos os fiéis, formando o coro, alcançam a entoação necessária, o outro cambondo, a um sinal do “Pai de Santo”, aproxima-se do primeiro e lhe despeja certa quantidade de pólvora na palma da mão e, em seguida, incendeia-a com um fósforo ou um tição. (figura 3)

Dá-se uma explosão. Imediatamente baixa Ogun, apoderando-se do seu corpo, dominando-o por completo. O “Pai de Santo”, com um novo gesto, suspende o canto e muda o ponto:

“Saravá, Ogun

Saravá (3)

Saravá, minha coroa,

Saravá!”

E o coro responde, com diferença de uma oitava no tom:

“Saravá, Ogun

Saravá

Saravá, minha coroa,

Saravá!”

Ogun, possuidor do corpo do cambondo, montado nele, o conduz aos corcovos pela roda, primeiramente acurvado, equilibrando-se com dificuldade e, depois, aos poucos, aprumando-se, até poder dançar. O canto continua, entrecortado de quando em vez, pelo “Pai de Santo” que o reforça, recomeçando:

- É, mias fio! Óia a ronda! Guenta ponto, mias fio. É, óia Ogun, mias fio, que tá no jongá.

Os fiéis, estimulados pelas exclamações do sacerdote, alteiam a voz; os tocadores redobram de energia, batendo os atabaques com mais força; e Ogun, já senhor do equilíbrio, dança com mais desembaraço. Quem o observa, sente uma sensação estranha, porque vê uma criatura humana com movimentos de boneco de engonço, e membros que não tem rigidez; o ritmo é brusco, bárbaro, suave às vezes, outras violento, mas sempre mole e desarticulado.

Em dado momento, aproxima-se de outro cambondo, puxa-o com a mesma moleza de gestos, para o centro da roda e, segurando-lhe as mãos de modo a curvar-se para a frente, esfrega-lhe a cabeça na sua até que ele, tomando por outro Ogun, recue, executando os mesmos movimentos desarticulados.

Então, o “Pai de Santo”, pegando pela lâmina, entrega uma espada a cada um. Transforma-se a dança em um duelo simulado. Brilham as lâminas no ar, como fuzis dentro da noite, em golpes de ataque ou de defesa, vibrados sempre com os mesmos gestos estranhamente moles e característicos. (figura 4)

E a cerimônia, que dura, às vezes, horas a fio, só termina quando os contendores, arquejantes de cansaço, um após o outro, aproxima-se da vela e enterram as espadas no chão, dançando ainda. O “Pai de Santo”, nesse momento, para o canto, bradando:

- Louvado seja Oxalá!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja os Tata!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja os Orixá!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o céu que nos cobre!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja a terra que nos cria!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o mar que nos alimenta!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o mato que nos esconde!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja o Sol que nos esquenta!

- Pra sempre seja louvado!

- Louvado seja a Lua que nos alumia!

- Pra sempre seja louvado!

- E louvado seja, mias fio, Ogun!

- Pra sempre seja louvado!

Findada a série de louvores, canta-se, então, o iman de despedida:

“Angó, angó, mia cambondo,

Eu vai simbora.

Fica cum Deus,

Cum Nossa Senhora!”

De novo recomeça a dança, mas, ao fim de vinte a trinta minutos, cada um, de sua vez, desprende-se, deixando os cambondos extenuados.

Canta-se o ponto de encerramento:

“Encerra a mesa,

Com licença de Congo.

Encerra a mesa,

Com licença de Congo.”

Mais um gesto do “Pai de Santo” e se cala o coro. Emudecem os atabaques. Está finda a cerimônia.

 

Notas do Autor:

(1) A expressão “Pai de Santo” dada ao sacerdote da Macumba não é correta. Emprega-se no sentido de ancião que tem conhecimentos e poderes com os quais pode forçar os santos a arriarem, isto é, a tomarem parte nas cerimônias do ritual. Um “Pai de Santo”, aliás, o mais inteligente, embora inculto, de quanto tenho conhecido, dizia-me, certa vez, na sua linguagem rude e pitoresca:

- A gente anda errado chamando de “Pai de Santo”. Cavalo de santo é o que a gente é, pois os santos arria em nós.

(2) Nunca pude obter uma explicação satisfatória da formação do universo. Interroguei muitos “Pais de Santo” sobre como Oxalá fizera o mundo, mas todos eles, invariavelmente, me responderam:

- Fazendo!

(3) Saravá é corruptela de Salve.



[1] A palavra “bas-fond”, de origem francesa, designa a “camada degradada da sociedade; escória social, ralé” (Dicionário Michaelis) .um “ambiente ou grupo social inferior ou marginal” ou, ainda, um “lugar onde vive um grupo social considerado inferior” (Dicionário Priberam) ou ainda a “zona de prostituição” (Dicionário Aulete). O autor utiliza esse termo pejorativo para desconsiderar as manifestações religiosas de origem africana.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

15 de novembro é o dia nacional da Umbanda?

Por Mário Filho



Imagem retirada de: https://pqvceassim.files.wordpress.com/2017/11


Segundo a Lei nº 12.644, de 16 de Maio de 2012, o dia 15 de Novembro é o Dia Nacional da Umbanda. 

Essa data se remete ao mito criacional, típico de todas as religiões, que narra os eventos que dão o início a qualquer uma delas. O mito criacional da Umbanda dá conta que em 15 de novembro de 1908, em Niterói/RJ, o rapaz de 17 anos chamado Zélio Fernandino de Moraes teria “incorporado” o Caboclo das Sete Encruzilhadas e este teria dito que no dia seguinte voltaria a “incorporar” em Zélio e criaria uma nova religião, que se chamaria “Umbanda”. 

Muitos autores, que se fiam nesse mito criacional, afirmam que o termo Umbanda nunca havia sido utilizado, sendo que o Caboclo das Sete Encruzilhadas teria sido o primeiro a fazê-lo. No entanto, em 1894, Heli de Chatelain, em seu livro “Folktales of Angola”, registrava o termo Umbanda, mostrando seu significado, como é encontrado em qualquer dicionário Quimbundo (uma das línguas faladas pelo povo Bantu), que quer dizer “cura”. 

Ora, sabe-se que no desenvolvimento do que hoje se chama Umbanda houve dificuldade para se dar a ela um nome “adequado”. Primeiramente se pensou em Embanda (uma corruptela da palavra bantu Imbanda, plural de Kimbanda, que quer dizer “curadores”), porém, segundo o próprio Zélio, em gravação registrada, o nome Embanda “não soava bem”. Houve, ainda, a proposta de se utilizar Alabanda, em homenagem ao Orixá Malê, que Zélio “incorporava” e que dizia ser um malaio muçulmano. Assim, segundo o próprio Zélio, Alabanda significaria “a banda de Alá”, referindo-se a Allah, nome de Deus para os muçulmanos. Ocorre que Orixá Malê só se manifestou em 1923, portanto o termo Umbanda ainda não era o designativo adotado para a “nova religião”. Lembro que Malê vem do idioma iorubá, Ìmàlè, que designa o muçulmano naquela língua. 

Gilberto Velho, Maria Villas-Boas Concone, Renato Ortiz, entre outros, afirmam que a Umbanda se desenvolve a partir dos anos 1930, o que corrobora com que escrevi até agora. 

Ainda assim, com o tempo, essa Umbanda praticada por Zélio passou a ser chamada de “Umbanda Branca e Demanda” (ou, também, “Umbanda Pura”). 

O que pouco se aborda, no entanto, é que momentos antes da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas houve a manifestação de uma outra “entidade”, chamada de Pai Antônio Curador (BRITTO, 2009), que era o espírito de um escravizado. Em que pese esse fato não ser desconhecido da maioria dos autores umbandistas, que o registraram, dá-se pouca importância ao que ele representava, fruto do racismo estrutural de nossa sociedade desde sempre. Pai Antônio é o símbolo do escravo humilde, conformado com sua posição subalterna, que diz que não poderia se sentar em cadeira, “pois lugar de preto é no toco e para ele bastaria um toco para se sentar”. 

Por meio dessa configuração, formou-se “a tríade da simbologia umbandista que a narrativa fundacional do Caboclo das Sete Encruzilhadas procurou consolidar: índio valente [Caboclo das Sete Encruzilhadas], negro humilde [Pai Antônio Curador], branco racional [Zélio Fernandino de Moraes, o espírita]. (BRITTO, 2009) 

Podemos, dos parágrafos anteriores, fazer algumas conjecturas: 1) o termo “Umbanda Pura” nos levar a crer que havia uma “Umbanda Impura”, ou seja, uma prática que não atendia aos anseios da elite branca carioca do início do século XX, que abominava as práticas “fetichistas” dos pretos e que deveria ser extirpada; 2) da mesma forma que a anterior, “Umbanda Branca” denota que existiria uma “Umbanda Preta”, que deveria ser desconsiderada;  3) somente a prática que tivesse a chancela dessa elite, ou seja, que fosse baseada no catolicismo popular, com suas práticas devocionais aos Santos católicos, unida ao pretenso cientificismo do espiritismo kardecista seria “aprovada” e chamada de “verdadeira” Umbanda. 

Como se vê, para que a Umbanda fosse legitimada era necessário que ela quebrasse sua ligação com a África e, por consequência, com qualquer coisa que lembrasse os negros, exceção feita à sua subalternidade, apontada especificamente no comportamento tradicional dos Pretos-Velhos; ademais, era necessário que o mito criacional afirmasse, sem dúvida, essa legitimação: por isso a escolha do 15 de novembro, dia da proclamação da República, como data de sua “anunciação”, bem como a escolha de um Caboclo como porta-voz do “mundo espiritual”, em um momento em que a literatura romântica brasileira e o brasilianismo buscavam estabelecer, no Caboclo (indígena), o símbolo da nação. Para temperar esse caldo, o Caboclo que teria se manifestado no dia 15 de novembro de 1908 não era um simples indígena, mas a reencarnação de um sacerdote jesuíta, o “Frei Malagrida”. Dessa forma, a Umbanda poderia se inserir, de forma legítima, no universo religioso brasileiro, pois estava totalmente de acordo com os anseios dos ideais branco-europeus: era cristã, tinha as bênçãos da Igreja Católica e era espírita (por isso ela se chamava “espiritismo de Umbanda”, denominação pela qual foi conhecida por muitos anos). (SILVA FILHO, 2014) Além disso, o Caboclo não era o "selvagem", o "arredio", que lutava contra o colonizador ou contra os Bandeirantes, mas o indígena que submeteu, que se convertera ao Catolicismo, que abandonara sua tribo; é o "Índio Peri" do romance "O Guarani" de José de Alencar.

Assim, práticas religiosas realizadas desde o Século XVII e que influenciaram diretamente a Umbanda, tais como a Santidade, o Calundu, o Cangerê, a Cabula, a Nbandla e a Macumba, além, é claro do Candomblé “de Caboclo”, Candomblé “de Nação” e o Culto Muçurumim (ou Malê) foram sistematicamente “desaparecidos”, pois eram realizados por indígenas (a Santidade) ou por escravizados ou ex-escravizados. Esse apagamento perdura até hoje e a imensa maioria dos umbandistas não quer discutir esse fato, pois repetem o mesmo discurso do mito da "democracia racial" de Gilberto Freire. Esses saberes foram vítimas do epistemicídio, que pode ser compreendido como a morte de saberes, conhecimentos e culturas de povos, que não são absorvidas pela cultura branca, ocidental (SOUZA SANTOS, 2007), fruto do colonialismo e do racismo. 

Citando a filósofa Sueli Carneiro, atual Coordenadora Executiva do Instituto Geledés e uma de suas fundadoras, podemos dizer que esse espistemicídio é “um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.” (CARNEIRO, 2005, p. 7) 

Continua, a filosófa: “[o epistemicídio é] um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações.” (CARNEIRO, 2005, p. 7) 

Renato Ortiz, no prefácio da 2ª edição do livro “A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira”, afirmou que no final da década de 1970 começou a se esboçar um “fenômeno de re-africanização”, como, por exemplo, a revalorização do Candomblé. No entanto, o autor afirma: “é interessante lembrar que não foi para a Umbanda que esse esforço de valorização se dirigiu. A religião umbandista, ao se definir como nacional, de alguma maneira infligiu uma morte branca ao seu passado negro.” 

Renato Ortiz continua: “como uma religião brasileira, a Umbanda foi obrigada a integrar sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que assina ao negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância branca.” (ORTIZ, 1988, p. 8) 

Sendo, assim, pela Lei, hoje, 15 de novembro, é o dia Nacional da Umbanda, mas essa data não corresponde aos fatos que envolveram a manifestação pública do Caboclo das Sete Encruzilhadas. É mais uma reafirmação do poder da elite branca, racista, esnobe e antropofágica brasileira.

 

 Referências bibliográficas:

   BRITTO, Cristina. O puro e o híbrido: o jogo de alteridades na formação representacional da Umbanda Branca. In: REVISTA CALUNDU - (Re)Existência: relatos sobre existência e resistência afrorreligiosa. Volume 3, Número 1, Jan-Jun 2019, disponível em http://calundu.org/revista, consultado em 15/11/2020.

   ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

   CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese de doutoramento. São Paulo: FEUSP, 2005.

   CHATELAIN, Henri. Folktales of Angola. Whitefish: Kessinger Publishing, 1984.

   SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

   SILVA FILHO, Mário Alves da. CHEGA DE ESTULTICE: estudo etimológico das palavras Umbanda e Kimbanda. Disponível em: https://pensamentovoa.wordpress.com/2015/05/13/94/, consultado em 15/11/2020.



quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Dia do Tradicionalismo

Dia do Ìṣẹ̀ṣe




Há alguns anos, no dia 20 de agosto, celebra-se o “Ìṣẹ̀ṣe Day”. Nesta data os que praticam em sua vida o caminho Tradicional Yorùbá, formado pelo culto aos Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà, festejam.

O nome Ìṣẹ̀ṣe pode ser usado para descrever múltiplas coisas na tradição Yorùbá. Literalmente, a palavra Ìṣẹ̀ṣe quer dizer tradicionalismo, porém ela é representação do conjunto de nossos Progenitores. Todos os Seres Primordiais da Criação são também chamados de Ìṣẹ̀ṣe, o coletivo de todos os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà são Ìṣẹ̀ṣe. É um termo também usado para sintetizar a tradição religiosa yorùbá como um todo; assim, nesse sentido significa tradicionalismo.

Ifá no Odù Ọ̀sá-Ìrẹtẹ̀ diz:
A enxurrada não tem enxada
Mas usa sua boca para escavar o solo até encontrar o barro vermelho
Fez-se a divinação para Ìṣẹ̀ṣe
Que foi a mais alta forma de adoração tradicional em Ìfẹ̀
Mãe é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
Pai é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Ori é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Olódùmarè é, Ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
Ìṣẹ̀ṣe é o primeiro a quem devemos propiciar em Ìfẹ̀ antes de receber as bênçãos
Deixe-nos propiciar Ìṣẹ̀ṣe, o pai de todas as propiciações

Neste Odù, Ifá nos ensina a quem devemos prestar nossa reverência e a quem devemos agradecer quando oramos em nosso próprio nome ou em nome de outras pessoas. Além disso, quando formos deliberar sobre alguma questão, precisamos investigar minuciosamente sobre o assunto, ou seja, olhar para todos os ângulos antes de trazer o problema aos nossos Òrìṣà e Irúnmọlẹ̀. A razão é que, em certos casos, o problema pode ser tratado com o auxílio dos Ancestrais ou checando as necessidades do Orí, bem como as relações com os pais e cônjuges, verificando se elas são as ideais.

Esse Odù Ifá nos ensina que não devemos sobrecarregar os Òrìṣà e Irúnmọlẹ̀ quando, muitas vezes, os problemas podem ser resolvidos ao abordá-los de uma forma diferente ou fazendo ajustes no estilo de vida. Além disso, esse Odù faz com que não enfatizemos a importância dos sacrifícios, mas a introspecção e o autoexame. Ifá ensina, ainda, que o modo como a pessoa usufrui de sua vida na Terra deverá ser minuciosamente investigado, bem como verificar se está vivendo de acordo com o seu destino.

No Odù Ọ̀wọ́nrín Ògùndá, Ifá diz:
Fez-se a divinação para Ìṣẹ̀ṣe
O líder da sociedade Orò em Ífẹ̀
Perguntaram, o que é Ìṣẹ̀ṣe?
Òlódùmarè é, Ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Orí é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Ikin Ifá é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe 
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Ilẹ̀ Aiyé é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Mãe é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe 
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Pai é, ele mesmo, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Vagina é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Pênis é, ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Olúwo é, ele mesmo, Ìsẹ̀ṣe
É mais sábio propiciar Iṣẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà, Ìsẹ̀ṣe
Deixe-nos propiciar Iṣẹ̀ṣe, não o milionário
Por favor, deixe-nos propiciar Ìsẹ̀ṣe
Antes de propiciar qualquer Òrìṣà
Ìsẹ̀ṣe é o Progenitor de todo ètùtù [apaziguamento]

O Awo Fálọmọ Ifálojú, interpretando esse Odù, nos esclarece: “O significado de Ìṣẹ̀ṣe se torna claro ao se ouvir a recitação desse Odù. Ele esclarece o que é Ìṣẹ̀ṣe e aquilo que o constitui. Os versos estabelecem que Ilẹ̀ Aiyé (Mãe Terra) é, ela mesma, Ìṣẹ̀ṣe; os Ikin Ifá (que representam Ifá) são, eles mesmos, Ìṣẹ̀ṣe, bem como os pais e os mais velhos. Estes têm conhecimento, adquirido pela experiência de vida, e devem ter interesse e maturidade para aconselhar e conduzir as pessoas no caminho correto.”

Com esse entendimento podemos ver a correlação existente entre Ìṣẹ̀ṣe e os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà. Se não fosse pela coletividade representada por Ìṣẹ̀ṣe não seria possível entender a essência dos Òrìṣà, ou seja, o conhecimento sobre os Òrìṣà vem de outra fonte, de Ìṣẹ̀ṣe, e se não fosse por Ìṣẹ̀ṣe nunca teríamos conhecido os Irúnmọlẹ̀ e Òrìṣà e as formas adequadas de propiciá-los. É Ìṣẹ̀ṣe que nos presenteou com o conhecimento para sermos capazes de honrar nossos Òrìṣà. Se não fosse por nossa ancestralidade, representada pela primordialidade de Ìṣẹ̀ṣe, nenhum de nós saberia da existência dos Irúnmọlẹ̀ e dos Òrìṣà.

Ìṣẹ̀ṣe Làgbà!!!!
Ìṣẹ̀ṣe Làgbà gbogbo wa!!!!
Olódùmarè a gbé wa o!!!!

Mario Filho
Oníwindé Ifáṣọlá Ifárinú Olúsọjí Oyékàlẹ̀

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Culto de Orixá não é adoração a ídolos


Culto de Òrìṣà (Orixá) não é adoração a ídolos

Por Ọba Adéyíká Òjòpagogo (International Council for Ifá Religion)
Tradução Mário Filho




A palavra “ídolo” é derivada do termo grego εἴδωλον (eídōlon) que significa imagem. No continente africano, nunca vi, li ou ouvi algo sobre a existência de uma imagem de Deus, seja na forma de uma figura, escultura, entalhe ou desenho que possa, indubitavelmente, provocar ou promover o pensamento do ser humano a fazer ideia de uma possível “morfologia” (corpo ou forma) de Deus. É muito claro para um yorùbá que Olódùmarè (Deus) é transcendental e, portanto, beira à abominação e autoengano representar Deus em qual forma for. 

Reconhece-se que imagens podem ser concretas ou verbais. Dessa forma, para a mente de todo africano, Deus é a Força Suprema, devidamente reconhecida como real, ativa, viva e onipresente governando a terra e os céus e, de fato, todo o Universo. 

É indiscutível, como explicamos anteriormente, que o modo de “serviço” à Força Suprema feita pelo africano (por iniciativa dos Òrìṣà), por meio de propiciações, que não há “imagem” visível de alguma forma que seja adorada. Objetos da Natureza, cujo benefício de seu uso foi encontrado pelos Òrìṣà (enquanto estiveram na Terra), são utilizados apenas como substrato para magnetizar a essência dos Òrìṣà que estão sendo propiciados. Os yorùbá creem que os Òrìṣà são intermediários entre eles e Deus quando invocados ou chamados (por súplica e outros meios); creem, também, que essa intermediação é desfeita quando os Òrìṣà são ignorados, negligenciados ou abandonados. 

Por óbvio, deve-se reconhecer que há uma diferença entre “cultuar algo” e “estar diante de algo para cultuar”. Assim, a melhor forma de serviço a Deus é conhecida pelos intermediários, que possuem mais proximidade com Ele e estão sempre em Sua Presença. Assim, aceitar, chamar ou identificar a Religião Tradicional Yorùbá como forma de adoração a ídolos requer melhor entendimento a respeito do significado a palavra ídolo, por questão de lógica. Dessa forma, é um mau uso das palavras, feita por pessoas mesquinhas, que chafurdam em escárnio e infundada condenação as quais pertencem a eles quando, especialmente, encontram-se afastadas de pesquisas profundas e significativas daquilo que lhes pertencem. Os africanos não são, de modo algum, adoradores de ídolos em seu modo de culto à Força Suprema, pois agem em consonância com a realidade existencial do homem na terra em face às divindades “et al”. 

No Odù Ìrẹtẹ̀gbè Ifá fala: 
Aquilo com o que nascem não ganha sua própria admiração. 
São os ideais estrangeiros que eles abraçam prontamente. 
Consultou-se Ifá para o anzol que acompanha o peixe (na água). 
Agora, porém, que todos os bens da vida estão fora de nosso alcance, 
Deixe o anzol e nosso Orí atraí-los para nosso proveitoso benefício 

O mistério da Macumba :  curiosas revelações sobre os ritos africanos no Brasil Por Carlos Alberto Nóbrega da Cunha (Matéria publicada n...